Domingo XII do Tempo Comum: «Portanto, não temais!»

Jr 20,10-13; Sl 69; Rm 5,12-15; Mt 10,26-33

1. Continuamos a escutar, neste Domingo XII do Tempo Comum, o Discurso Missionário de Jesus no Evangelho de Mateus, hoje Mateus 10,26-33. Omitiu-se Mateus 10,9-25, em que Jesus fazia aos seus Doze Apóstolos um vivo apelo ao despojamento radical: ide sem ouro, nem prata, nem cobre, nem alforge, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado, nem pão; apenas Paz! Ao mesmo tempo, prevenia-os para as perseguições que viriam de toda a parte. Das autoridades, das povoações em geral, dos interesses e ideologias reinantes, dos próprios familiares. Anunciar Jesus tem custos e implicações e acarreta perseguições, que podem ir até à morte violenta. Mas é também nos tribunais e perante os governadores e reis deste mundo que é preciso dar testemunho de Jesus, anunciando nesses areópagos que haverá outro julgamento, em que as leis são outras, e que há outro Juiz, outro Rei e outro Reino. Neste contexto, é importante ainda que os enviados do Evangelho não se precipitem a expor humanas razões, que nada valem, mas que saibam dar lugar ao «Espírito do vosso Pai», pois será Ele que falará em nós e em nosso favor (Mateus 10,19-20).

2. A pequena perícope de hoje (Mateus 10,26-33) tem naturalmente em conta tudo o que a precede: por um lado, as perseguições, porventura até à morte terrena, até ao martírio, que a pregação do Evangelho acarreta; por outro lado, a plena confiança em Deus, nosso Pai, que cuida dos enviados de Jesus, como cuida de nós, em todas as circunstâncias. Daí a locução «Não temais!», verbo grego phobéomai, que soa no pequeno texto de hoje por três vezes na forma negativa: «Não temais» (mê phobeîsthe) (Mateus 10,26.28a.31), e uma vez na forma positiva: «Temei antes…» (phobeîsthe dè mâllon) (Mateus 10,28b). Compreende-se, no primeiro caso, que se trata de não temer os perseguidores, e a razão é que há Alguém mais poderoso, que pode mais do que os perseguidores, e que protege sempre os enviados e servidores do Evangelho. Por isso, é a esse mais poderoso, que é Deus, que se deve temer no sentido positivo: «Temei antes…». A espiritualidade bíblica e judaica tinha em grande apreço o temor de Deus. O temor é devido a Deus. O temor de Deus era e é uma referência fundamental da piedade judaica, como o é também da piedade cristã. Diz exemplarmente o tratado Pirqê ?Abôt [= «Ditos dos Pais»], da Misnah Judaica: «Tende sempre sobre vós o temor dos Céus» (1,3). O temor dos Céus, circunlocução para evitar dizer o nome de Deus, compete só a Deus, só a Deus é devido. Os perseguidores, ainda que poderosos, não merecem a reverência do temor de Deus! Quem está a ler o pequeno texto com atenção, deparando-se por três vezes com a locução «Não (os) temais!», seguramente se recordará da Carta de Jeremias, que a Vulgata junta ao Livro de Baruc, que só nos chegou em grego, aparecendo como o seu Capítulo VI, e em que sistematicamente se vai lendo acerca dos ídolos, e com pesada ironia e diluente sarcasmo: «Não são deuses; portanto, não os temais!» (Baruc 6,14.22.28.64.68).

3. Sendo então Deus o mais poderoso e o único que merece a reverência dos enviados do Evangelho e o seu temor, a nossa reverência e o nosso temor, a missão dos enviados do Evangelho, como também a nossa, a uns e outros confiada por Jesus, não pode ser calar a verdade do Evangelho só porque pode incomodar e pôr a descoberto o falso poder dos poderosos e os interesses e ideologias de turno que movem este mundo. Os enviados de Jesus devem anunciar sem medo, sempre e em toda a parte, a verdade do Evangelho, que é Jesus, no sentido subjetivo e objetivo. E se nos cortarem as estradas e outros meios e acessos, é sobre os terraços das casas [telhados não havia naquele tempo nas casas da Palestina], lugares tradicionais de descanso (Mateus 24,17 e de oração (Atos 10,9), mas sempre lugares altos, que deve ser gritado o Evangelho (v. 26-27). O texto repete que não nos compete temer o poder dos poderosos e ideólogos de turno. O maior dano que o seu poder pode causar é matar o corpo (sôma), mas não podem matar a alma (psychê). O simples facto de se falar de «matar o corpo» deixa implícito que uma pessoa é mais do que o corpo, como Sextus, um pitagórico do séc. I a.C., ilustra nas suas Sentenças: «Como um leão tem poder sobre o corpo de um sábio, assim também um tirano, mas só sobre o corpo» (Sent. 363b). É mais sensato e inteligente, por isso, temer a Deus, que é mais poderoso, pois pode destruir na geena «a alma e o corpo» (psychê kaì sôma) (v. 28), isto é, o ser humano na sua inteireza, todo, como expressa bem Isaías 10,18, que fala da destruição das florestas da Assíria [e de Judá], no seu todo, empregando aqui a locução analógica «corpo e alma» (basar e nephesh TM; sárx e psychê LXX), para dizer toda a floresta.

4. É claro que este vocabulário serve aqui para dizer a totalidade, e não tem a conotação dualista que a filosofia grega lhe atribui. O poder dos poderosos pode causar a morte terrena, mas nada pode nem sabe acerca da salvação eterna e da condenação eterna. Aqui, na morte terrena, acaba o poder dos homens e das ideologias e entra-se no âmbito exclusivo de Deus. Com esta articulação e clarificação temática, fica também à vista que a vida terrena não é o bem maior, do mesmo modo que a morte terrena não é o mal maior. O bem maior que o Evangelho anuncia é a nossa relação com Deus e a vida eterna que daí deriva, que também não está na mão dos homens, mas apenas na mão de Deus. Por isso, os enviados do Evangelho não devem, em caso algum, ceder aos poderosos e às ideologias de turno, mesmo que essa atitude de coragem e resistência lhes acarrete a morte terrena, como aconteceu a não poucos mártires ao longo da história. A história da Igreja está marcada pelos mártires. Ao contrário do que se possa pensar, o martírio não revela o além, mas o aquém: a história humana é revelada de um extremo ao outro. O martírio é a negação do absurdo e uma fonte de sentido e da providência de Deus! Os pregadores do Evangelho, enviados por Jesus, de tudo despojados, não buscam fama nem proveito nem se contentam com qualquer acomodação. O Reino de Deus não se acomoda ou negoceia. Os anunciadores do Evangelho não pregam as suas ideias nem passam as suas mensagens. Pregam o Evangelho de Jesus, dando, se necessário for, a sua vida terrena pela causa de Jesus, tudo em ordem, não a qualquer simples acomodação ou inclusão, mas à conversão para a vida eterna (cf. Atos 11,18), que Deus a todos concede.

5. Não devemos, pois, temer os homens. A alternativa é temer reverencialmente a Deus. O precioso discurso missionário de Jesus evolui então para precisar que Deus é o nosso Pai providente, que vela até pelos passarinhos que não valem quase nada: o valor de mercado de dois desses passarinhos é de um asse, que é uma moedinha de cobre que vale 1/16 avos de um denário. Um denário é o ordenado diário de um trabalhador. Um asse seria, portanto, o pagamento equivalente a 15-20 minutos de trabalho numa jornada de trabalho que então se contava de sol a sol. E Jesus conclui ao jeito rabínico, do menor para o maior (qal wahomer): se Deus, vosso Pai, cuida desses passarinhos, pequeninos, quanto mais fará sentir a sua providência sobre vós. Vós valeis muito mais do que muitos passarinhos (v. 29-31). O resto do texto serve ainda para Jesus lembrar aos seus discípulos e a nós de que devemos dar testemunho dele diante dos homens, para que também Ele dê testemunho de nós diante do «meu Pai» que está nos Céus (v. 32-33). Inquebrável é esta relação que une Jesus ao Pai, que afinal é também o Juiz verdadeiro, o Rei verdadeiro, o único a quem devemos reverencialmente temer. O resto, tudo o resto, os poderes que apenas metem medo e as ideologias enganosas e poeirentas, convém que não os deixemos apegar nem à sola dos nossos pés. Limpemos, pois, o pó. Apeguemo-nos ao amor. Poderes e ideologias vivem da sedução. O discípulo de Jesus, enviado a anunciar o Evangelho, vive da verdade de Cristo e dá a sua vida pela verdade de Cristo, título de glória que nunca lhe será arrebatado (cf. 2 Coríntios 11,10).

6. Em pura sintonia com o Evangelho, entre a perseguição de todos e o amor de Deus que tudo supera e vence, chega-nos também hoje, neste Domingo XII, a voz simultaneamente dorida e tranquila, mas sempre apaixonada e orante de Jeremias 20,10-13. É um extrato de uma das suas «Confissões», que se podem ver em Jeremias 11,18-12,6; 15,10-21; 17,12-18; 18,18-23; 20,7-18, e que são uma espécie de diário interior, autobiográfico, em que o profeta de Anatôt, uma aldeiazinha situada a meia-dúzia de km a nordeste de Jerusalém, grita a Deus as dores e os amores da sua vida. Jeremias atravessou o período mais dramático da história do seu país, vendo primeiro, em 609, morrer tragicamente o justo rei Josias, subir ao trono o tirano rei Joaquim (609-597), assiste às duas entradas do babilónio Nabucodonosor em Jerusalém, em 597 e 587, sendo a segunda para arrasar Jerusalém e o Templo, deportar o rei Sedecias e pôr fim à nação de Judá. No meio de tudo isto, muita corrupção, muita violência, muitos interesses em jogo. Jeremias é dotado de uma sensibilidade apuradíssima. Ele é, com certeza, o mais terno dos homens da Bíblia, um romântico afeiçoado ao seu país, à sua religião e ao seu Deus, à sua aldeia natal de Anatôt, aos afetos e ao amor. Todavia, por não poder calar o que tem de dizer, por não poder fugir de Deus e da sua Palavra, vê-se excomungado, perseguido pelos seus conterrâneos de Anatôt, denunciado por parentes e amigos, obrigado a não poder constituir família com a mulher amada (Jeremias 16,2). Por todos amaldiçoado (Jeremias 15,10), perseguido pelo poder, torturado e flagelado (Jeremias 20,1-6), preso (Jeremias 37,13-38,6) e exilado para o Egito (Jeremias 43,6-7), Jeremias continuou sempre a gritar a Palavra a arder que lhe chegava de Deus (Jeremias 15,16; 20,9). Jeremias articula muito bem, na sua vida, tal como Jesus e os seus discípulos de todos os tempos, missão, perseguição e esperança.

7. Por falar em missão, perseguição e esperança, vale a pena também, porque ajuda a esclarecer a força da missão do Evangelho de hoje, olhar para o Apóstolo. S. Paulo explica bem, na grande lição da Carta aos Romanos de hoje (5,12-15), que a Lei, por melhor que seja, não anula o pecado nem cura da morte. Antes, torna o pecado manifesto, pois a Lei é uma espécie de dique que aumenta a albufeira do pecado, e, portanto, o vau da morte. Aumentando a albufeira do pecado, torna-o visível, mostra-o, fá-lo entrar pelos olhos adentro. É assim que se pode ver depois, também, com todo o relevo e a toda a luz, a graça de Cristo Salvador. Foi quanto Paulo foi forçado a ver na estrada de Damasco. Tanto viu que ficou encandeado, e nunca mais viu como via antes. Mas foi «o maior missionário de todos os tempos», para usar as palavras certeiras de Bento XVI.

8. O Salmo 69, que é uma súplica individual, continua a mostrar, com linguagem forte, como é habitual nos Salmos, figuras orantes e cheias de esperança, como Jeremias, como Jesus e os seus Apóstolos, como os missionários mártires de todos os tempos, por todos perseguidos e abandonados, mas sempre com Deus por perto, que escuta as súplicas e o louvor dos pobres e humildes. O trono de Deus, a sua cátedra, são as nossas misérias e as nossas dores, como nos ensinou S. João XXIII.

António Couto



Newsletter Educris

Receba as nossas novidades