Domingo XI do Tempo Comum: «Mudança de lugar e de modo»

Ex 19,2-6a; Sl 100; Rm 5,6-11; Mt 9,36-10,8

1. Atravessada em seis etapas dominicais (Domingos IV a IX) a paisagem sublime das alturas do Discurso programático da Montanha (Mateus 5,1-7,29), a que não tivemos acesso na totalidade devido à entrada de outras festividades (Ascensão, Pentecostes, SS.ma Trindade) que ocuparam os Domingos VII, VIII e IX, e tendo vivido de perto a cena do chamamento e resposta imediata e festiva de Mateus (Mateus 9,9-13) (Domingo X), ficaremos agora, durante três Domingos (XI-XIII) com o chamado Discurso Missionário (Mateus 9,36-11,1).

2. Neste Domingo XI, escutaremos Mateus 9,36-10,8. Tudo começa pelo princípio. E o princípio é sempre a misericórdia de Jesus, dita no texto grego com o verbo splagchnízomai, quase sempre com o aoristo passivo esplagchnísthê, que tenta traduzir o intraduzível rahamîm hebraico, plural intensivo de rehem, que pretende dizer o ventre materno no seu todo, como lugar onde se origina a vida (e nunca onde se sufoca a vida). Na maneira de ver hebraica e grega, mas também entre nós, o ventre é o lugar mais frágil e o mais rapidamente afetado por qualquer circunstância triste ou feliz. Por isso, a misericórdia aparece ligada ao ventre. Dizer isto de Jesus é compreender que, à vista das multidões cansadas e abatidas, comparadas a ovelhas sem pastor (Mateus 9,36), Jesus é tomado de assalto por um movimento visceral, maternal intenso, imediato e irreprimível. É a mesma comoção visceral, maternal irreprimível, que encontramos em tantas outras circunstâncias do Evangelho: a cena da viúva de Naim (Lucas 7,13), do bom samaritano (Lucas 10,33), do pai da parábola das misericórdias (Lucas 15,20). De notar, desde já, que há uma diferença assinalável entre misericórdia (rahamîm) e amor (hesed). A misericórdia bíblica não se equaciona, pensa, calcula ou programa: é para já, toma-nos de assalto quando se nos depara uma situação que reclama logo ali as nossas mãos. Ao contrário, o amor bíblico, a hesed, que nos coloca no cenário da aliança e do compromisso, reclama de nós que pensemos previamente para que a decisão que vamos tomar seja firme e consistente. A expressão «como ovelhas sem pastor» é uma maneira de dizer muito bíblica para expressar a dispersão, o desalento e o desencanto das pessoas (Números 27,17; 1 Reis 22,17; Judite 11,19; Ezequiel 34,5-6; Zacarias 10,2).

3. Jesus quer envolver nesta maneira de ver enternecida e comovida, misericordiosa, os seus discípulos. Por isso, dirige-se logo a eles com estas palavras: «A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos; pedi, pois, ao Senhor da messe que mande trabalhadores para a sua messe» (Mateus 9,37-38). A messe, grego therismós, qualifica a colheita, não a sementeira. A messe, dita com o termo grego therismós, é uma imagem muito bíblica para desenhar, não o tempo da sementeira, da espera e da preparação, mas o tempo amadurecido e pleno da realização do Reino de Deus, com a vinda do Messias, um tempo novo, não de lágrimas, mas de alegria e de canções, como refere o Salmo 126,5-6: «Os que semeiam com lágrimas,/ ceifam no meio de canções./ Vão andando e chorando,/ levando as sementes;/ ao voltar, vêm cantando,/ trazendo os molhos de espigas». É sintomático, e esbarra contra o nosso muito requintado gosto de apresentar resultados imediatos e estatísticas elevadas, que Jesus diga que «a messe é grande, e os trabalhadores poucos», e que não ponha logo os seus discípulos em campo a fazer projetos, planos e programas de ação para acudir àquela situação, e que, em vez disso, os mande pedir ao Senhor da messe que envie operários para a sua messe!

 4. Com um procedimento assim, Jesus deixa desconcertados aqueles discípulos, e a nós com eles. Na verdade, Jesus está a passar-nos um ensinamento essencial, que repetidamente esquecemos. Está a dizer-nos que o povo e a precária condição em que eventualmente se encontra nunca é um campo aberto às nossas experiências, estudos, programas ou simples ensaios de medidas sócio caritativas, por bem intencionado que tudo isto seja. Primeiro e antes de tudo – primeiro, primeiro, primeiro –, Jesus remete-nos para Deus, que é o Senhor da messe. É como quem diz que quem quiser verdadeiramente ajudar as pessoas em qualquer situação precária, não pode apresentar-se em nome próprio e por sua conta e risco. Tem de pedir esse privilégio ao Senhor da messe, e tem de ser por Ele enviado. O reconhecimento de Deus como Senhor da messe (1), a oração que lhe dirigimos (2), e a obediência que lhe devemos (3) são as condições primeiras da missão. Portanto, depois de ter mostrado àqueles discípulos a precária situação daquele povo abandonado e de lhes ter indicado as condições para levar a cabo a missão de misericórdia em seu favor, só agora, Jesus envia em missão «os seus doze discípulos» (Mateus 10,1), logo indicados como os «doze apóstolos», ou enviados (Mateus 10,2). Ao fazer o que faz e como o faz, isto é, ao preparar e presidir a esta ação de envio, Jesus assume-se como Senhor da messe, isto é, como Deus.

5. A imagem da messe, que traz consigo a realização do Reino de Deus, completa a imagem do jejum, referida pouco atrás, em Mateus 9,14-15. Os discípulos de João Batista e os fariseus jejuam para apressar a vinda do Messias. Os discípulos de Jesus não jejuam, porque o Messias já está com eles. Ele é o Reino-de-Deus em Pessoa, a Autobasileía, no dizer certeiro e contundente de Orígenes (185-254), o insigne mestre das escolas de Alexandria e de Cesareia Marítima. É por isso que o dizer dos Doze Apóstolos enviados em missão deve soar: «Fez-se próximo o REINO dos CÉUS» (Mateus 10,7b), sendo que «fez-se próximo» está escrito em grego com éggiken, que é o perfeito do verbo eggízô. E já se sabe que o perfeito grego começa e continua, não está de passagem. Está no meio de nós. E é Ele que prepara e preside à missão de que nos incumbe.

6. É neste contexto que Jesus envia em missão os seus Doze Apóstolos, citados pelo nome, e que ficam fortemente vinculados a Jesus. 1) Em primeiro lugar, pelo chamamento (10,1a). 2) Depois, pela autoridade dada (10,1b). 3) Em terceiro lugar, pelo envio (10,5 e 16). 4) Depois, pelo anúncio (kêrýssô), que coloca sobre eles a marca da fidelidade: o mensageiro (kêrix) não transmite as próprias ideias, mas anuncia fielmente a mensagem que lhe é confiada (10,7a). 5) Em quinto lugar, pelas palavras que devem dizer: «Fez-se próximo o REINO dos CÉUS» (10,7b), que já foram postas na boca de Jesus (4,17) e de João Batista (3,2). 6) Depois, pelas obras que devem realizar (10,1 e 8), que são também realizadas por Jesus (4,23-24; 8,16-17), e servem para identificar Jesus (11,5). 7) Em sétimo lugar, indo, antes de mais, à procura das ovelhas perdidas (10,6; cf. 18,12), imitando Jesus (9,36; 15,24). 8) Depois, pela Graça preveniente e concomitante: «recebestes de graça, dai de graça» (10,8). 9) Em nono lugar, pela sobriedade e despojamento, pobreza e simplicidade (10,9-10), que os conforma ao «Filho do Homem», que «não tem onde reclinar a cabeça» (8,20), até à Cruz (João 19,30). 10) Depois, pelo reconhecimento da imensa dignidade impressa em cada ser humano, imagem de Deus: daí o invulgar «sem sandálias (só em Mateus e Lucas 10,4) nem bastão» (10,10). Sem sandálias: é assim que se está na presença do Deus Santo (Êxodo 3,5; Josué 5,15). Sem sandálias e sem bastão: era assim que se entrava no Templo (os sacerdotes oficiavam descalços) e na sinagoga. Os enviados de Jesus sabem que vão na presença de Deus e devem ver em cada ser humano a imagem de Deus, suprema dignidade. 11) Em décimo primeiro lugar, pelo sustento (10,10), dado por Deus ao seu Servo e a Jesus, conforme a lição de Isaías 42,1, texto citado por Mateus em 12,18, e também Elias, que bebe da torrente e é alimentado pelos corvos (1 Reis 17,4-6), e o Rei messiânico que, a caminho, bebe da torrente (Salmo 110,7). 12) Depois, o facto de sacudirem o pó dos pés ao sair de casas e cidades não acolhedoras (10,14) reclama a remoção do pó profano num caminho sagrado. 13) Em décimo terceiro lugar, pela rejeição e perseguição que lhes será movida (10,16-19), que é também, desde o princípio, a perseguição movida a Jesus (2,13). 14) Depois, pelo acompanhamento permanente e tranquilo do Pai e do seu Espírito, pelo que devemos fazer pausa e bemol, para que seja o Espírito a falar em nós (10,19-20; cf. 17,9). 15) Por último, quem acolher os Doze, acolhe Jesus e o Pai (10,40).

7. As anotações acabadas de fazer dizem respeito a todo o discurso missionário, e devem, por isso, ser tidas em consideração também nos próximos dois Domingos. Jesus chama os Doze, dá-lhes autoridade e envia-os. A autoridade não é coisa própria dos Doze. É dada e recebida da fonte, que é Jesus. E destina-se a libertar as pessoas da influência dos espíritos impuros e a curar. Nas pessoas simples da Palestina do tempo de Jesus, estava ancorada a crença nos espíritos bons e maus que governavam o mundo e se instalavam como parasitas nas pessoas. Expulsar os espíritos maus não é nem menos eficaz nem menos credível que as curas psicanalíticas atuais. O envio é para anunciar (kêrýssô) que o Reino dos Céus se fez próximo e que é preciso ir à procura das ovelhas perdidas e encher o mundo de paz e de esperança. A base é deixar-se tomar pela misericórdia.

8. Um ícone ilustrativo desta grande lição de Jesus que acabámos de expor. Num dia de Fevereiro de 1208, talvez no dia 24, então Festa de S. Matias, na igreja de Santa Maria degli Angeli (Porziuncola), em Assis, um jovem rico e até então dado a não poucos devaneios, o «Rei da juventude de Assis», ouviu a leitura desta página luminosa. Acendeu-se-lhe o coração. Nesse dia nasceu, ou completou o seu novo nascimento, S. Francisco de Assis. Apegou-se a Deus e à pobreza e ao Evangelho de Jesus.

9. O contraponto musical em pura sintonia vem hoje do grande texto de Êxodo 19,2-6, e lança a semente para tempos de colheita e realização que hão de vir, e que o Evangelho mostra cumpridos. O «dizer» de Deus está guardado no centro da estrutura, como num envelope. Tem a ver com um passado de graça operado por Deus em favor dos Filhos de Israel e por estes experimentado e por um futuro de graça oferecido por Deus e que pode também ser experimentado. «Vós vistes o que Eu fiz ao Egito, como vos carreguei sobre asas de águia e vos trouxe até mim» (Êxodo 19,4), eis o passado de graça, com fé e amor recitado – «o relato acredita-se; a história sabe-se» –, «módulo narrativo» elástico e miniatural que carinhosamente guardamos e transportamos connosco como uma joia de família, junto ao coração: é pequeno, trabalho delicado de artística e carinhosa miniatura, que recolhe com ternura o passado e o torna presente, para ser facilmente transportado e calorosamente recitado por cada um de nós; nele nos reconhecermos, dele vivemos, com ele nos identificamos, com ele nos apresentamos. O passado e o futuro de graça rodam, porém, sobre a resposta de adesão a Deus que Israel tem de dar, e não pode deixar de dar, exigida por aquele enfático «E AGORA» (we‘attah) que ocupa o centro da estrutura. Salta à vista que há um «dizer» de Deus a atravessar o texto, a atravessar Israel e a atravessar-nos a nós. Note-se ainda que está aqui a nascer um povo sacerdotal, verdadeiro «sacerdócio comum dos fiéis», assente na escuta e no cumprimento da Palavra, relação nova de nova proximidade e nova familiaridade entre Deus e o seu povo.

10. A Carta aos Romanos 5,6-11 mostra-nos aquele Jesus Cristo que se debruça com amor sobre o nosso desvalor, exatamente como aparece no Evangelho de hoje, maternalmente se compadecendo das pessoas perdidas, cansadas e abatidas. 

11. Na tradição judaica, o Salmo 100 constitui uma velha, pequena oração que ressoa no nosso coração como louvor ao Deus bom, cujo amor é eterno. Intitula-se «Um cântico para a tôdah» (mizmôr letôdah), isto é, para a ação de graças ao Senhor. Este pequeno hino articula gritos de alegria, louvor, conhecimento, súplica, bênção. Agostinho comenta assim: «Deixa que a oração se transforme no teu alimento. Rezando, adquires novas energias, e Aquele a quem rezas torna-se mais doce para contigo». No centro do pequeno hino está uma profissão de fé no Senhor: o Senhor é Deus, nosso criador, que estabeleceu a aliança com Israel: «nós somos o seu povo», o amor do Senhor é para sempre, a sua fidelidade por todas as gerações (v. 3 e 5).

 

António Couto



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