X Domingo do Tempo Comum: «Da banca de impostos para a casa e para a mesa»

Os 6,3-6; Sl 50; Rm 4,18-25; Mt 9,9-13

1. Atravessado em seis etapas (Domingos IV-IX) o Discurso programático da Montanha, eis-nos agora, neste X Domingo do Tempo Comum, a braços com a narrativa da vocação de Mateus, narrada pelo próprio Mateus (9,9-13). É o único cenário de vocação em que aparece o nome Mateus. Nos lugares paralelos de Marcos 2,14 e de Lucas 5,27 aparece o nome Levi. É importante o nome Mateus (Maththaí, do hebraico Mattay, nome abreviado do teofórico Mattanyah [= «dom de Deus»]), que traduz bem a plantação nova de Deus (Isaías 61,3; Mateus 15,13), que atravessa de lés-a-lés o texto deste Evangelho, gerando espantos sucessivos em todos aqueles que têm coração para ver! Mateus, do comércio, da banca de impostos, para a CASA e a MESA. Espaço relacional novo. Puro confronto com o comércio que se faz(ia) na MINHA CASA, que é o Templo de Deus (Mateus 21,12-13).

2. O quadro imediatamente anterior (Mateus 9,1-8) narra o episódio habitualmente intitulado «cura de um paralítico». Na verdade, este texto é considerado um dos eixos do Evangelho de Mateus. Trata, sim, da cura radical do paralítico, pois Jesus concede-lhe o perdão dos pecados (Mateus 9,2), e o povo fecha o cenário louvando a Deus por ter dado uma tal autoridade (exousía) aos homens (toîs anthrôpois) (Mateus 9,8). Esta autoridade nova e maravilhosa dada, não apenas àquele homem, Jesus, mas aos homens (a conclusão excede as premissas), é o perdão, que é uma das chaves de leitura do Evangelho de Mateus. Digamos que é o segredo da vida de Mateus, logo posto a descoberto no cenário da sua vocação, que hoje nos ocupa.

3. Na verdade, o publicano Mateus [o termo publicano deriva do termo latino publicanus, que designa coletor de dinheiro público, latim publicus] foi atingido no coração pelo PERDÃO. Visto, amado e chamado por Jesus, nasce aí, nesse olhar novo de PERDÃO radical, a nova identidade de Mateus e a sua particular sensibilidade pela prática do PERDÃO, como resposta ao PERDÃO primeiro de Deus. Vejamos um bocadinho do texto: «E andando dali, Jesus VIU um homem sentado na banca de impostos, chamado Mateus, e disse-lhe: “Segue-me!” E, tendo-se levantado, seguiu-o. E tendo-se reclinado à MESA, em CASA, vieram muitos publicanos e pecadores, e reclinavam-se à MESA juntamente com Jesus e os seus discípulos» (Mateus 9,9-10).

4. O posto de cobrança de Mateus situava-se um pouco a norte de Cafarnaum, junto da estrada internacional que ali passava, e que ligava o Egito à Mesopotâmia. Os publicanos estavam ao serviço do poder ocupante, o império romano, e cabia-lhes a tarefa odiosa de cobrar impostos aos seus concidadãos judeus para os entregar às autoridades romanas, e meter ainda alguma coisa ao bolso. Sendo considerados cúmplices de romanos e ladrões, eram naturalmente mal vistos e odiados pelos judeus, que os insultavam e enchiam de nomes feios. 

5. O segredo está em que um dia passou pela banca de impostos de Mateus um homem chamado Jesus, que, em vez de insultar Mateus, o VIU com o olhar BOM do criador (Mateus 9,9), e o chamou. A resposta de Mateus foi imediata. Afinal, nunca ninguém o tinha tratado como gente!

6. O passo seguinte tem de ser a Festa para celebrar tão grande reviravolta. E assim se reúnem, na mesma CASA e à mesma MESA, Mateus e os seus amigos, publicanos e pecadores como ele, e Jesus e os seus discípulos.

7. Surgem então ao fundo da cena os fariseus, que adoram escandalizar-se, isto é, só estão bem a ver o mal que pensam que os outros fazem, e ficam perplexos quando veem Jesus em tão más companhias e a não respeitar as tradições e convenções que eles tinham por sagradas! Estas convenções atiravam com os publicanos para o caixote do lixo da sociedade civil e religiosa de então, que punha os publicanos ao nível dos pagãos e das prostitutas e de toda a espécie de pecadores e de pessoas desprezíveis (cf. Mateus 18,17; 21,31-32), isto é, associava-os a gente que, segundo eles, vivia bem longe das pautas da vontade de Deus e devia ser votada ao desprezo. De gente assim, pensavam os fariseus, deviam as pessoas honestas e religiosas afastar-se, evitar a convivência com eles, e, sobretudo, nunca se reclinarem com eles à mesma mesa. Daí, a razão de ser da pergunta que os fariseus fazem aos discípulos de Jesus: «Por que é que o vosso mestre come com os publicanos e os pecadores?» (Mateus 9,11).

8. Jesus, que terá ouvido também a pergunta, toma a seu cargo a resposta, que articula em três pontos: 1) uma imagem derivada do quotidiano e que todos compreendiam; 2) uma citação da Palavra de Deus do Antigo Testamento, que todos aceitavam; 3) a afirmação e clarificação da missão que lhe tinha sido confiada. Em primeiro lugar, Jesus compara a sua presença no meio dos pecadores com a presença do médico junto dos doentes, fazendo ver com esta imagem esclarecedora que assim como o médico tem de estar junto dos doentes, para os curar, assim Jesus tem de estar junto dos pecadores, para lhes levar a salvação de Deus. Sem o dizer, Jesus diz que não veio como um juiz que condena e castiga, ao gosto dos fariseus, mas como um médico que ausculta e cura. Recorrendo agora ao Antigo Testamento, que guardava a Palavra de Deus, que os fariseus também respeitavam, Jesus destaca o dizer de Deus: «Misericórdia Eu quero, e não sacrifícios», que se encontra em Oseias 6,6. Com esta citação, que os fariseus não podem rebater, Jesus diz que Deus antepõe às formalidades religiosas a atenção aos pobres e necessitados. E também aqui, sem o dizer, Jesus diz que também os fariseus não devem descurar esta atenção assente na Palavra de Deus, que eles também não podem rebater. Depois de ter recorrido à imagem e missão do médico, e depois de ter colocado diante de todos a misericórdia de Deus, Jesus afirma e esclarece agora a sua própria missão, dizendo: «Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores» (Mateus 9,13), mostrando que leva a cumprimento, de forma exemplar, a misericórdia que Deus quer, e compara a sua missão à do médico, declarando, todavia, que a sua missão não se destina tanto às doenças do corpo, mas à salvação da alma. Em suma, Jesus faz ver aos fariseus que eles nada sabem nem querem saber da saúde, da salvação e do Perdão trazidos pelo Médico divino! Na verdade, o olhar de Jesus é o olhar novo e bom do Criador, e traz consigo amor e misericórdia, e não velhos rituais, clichés e maneiras distorcidas de ver e analisar a realidade.

 

9. Para nos pôr todos em sentido, porque é da Palavra de Deus que se trata, cai hoje também nos nossos ouvidos a Palavra de Deus guardada no Livro do profeta Oseias 6,3-6, que põe Deus a declarar que é amor e conhecimento de Deus o que quer de nós. O conhecimento bíblico não é teórico e escolar. É pessoal e experimental. Portanto, o nome do conhecimento é o amor. Não o amor da sabedoria, mas a sabedoria do amor. Este filão do amor e do verdadeiro conhecimento de Deus, que é sempre seguir Deus, imitar Deus, como Mateus segue Jesus, exclui ritualismos, exterioridades, impostos, retenções na fonte, burocracias (cf. 1 Samuel 15,22; Oseias, 6,6; Amós 5,22; Isaías 1,10-20). Na verdade, o amor de Deus trazido até nós pelo médico divino obriga-nos a renovar toda a nossa vida, pondo em causa radicalmente a nossa vã maneira de viver.

10. No recorte da Carta aos Romanos hoje lido (4,18-25), Paulo põe diante de nós um bocadinho delicioso da história de Abraão, tal como nos é contada no Livro do Génesis. Seguindo a Palavra de Deus (Génesis 12,1-3), aos 75 anos (Génesis 12,4), no annus mundi 2021, Abraão imigra de Haran, na Alta Mesopotâmia, para a Palestina, estabelecendo-se no Hebron (Génesis 13,8). É aos 100 anos (annus mundi 2046) que acolhe, por entre risos, a promessa do nascimento de um filho, de nome Isaac, que a sua esposa Sara, então com 90 anos, daria à luz (Génesis 17,16-17). Dado o cenário exposto no Génesis, é de todo compreensível que Paulo escreva acerca de Abraão que, «contra a esperança (humana) (par’ elpída), na esperança acreditou (ep’ elpídi epísteusen)» (Romanos 4,18). A gramática ensina-nos que, na locução ep’ elpídi, a preposição epí, seguida do dativo, indica o objeto e o fundamento da fé, que é uma esperança nova e desmesurada, ainda não vista (Romanos 8,24) nem sabida, assim como a preposição pará com acusativo pode significar «para além de» ou «contra». S. João Crisóstomo explica assim, e explica bem: «era contra a esperança humana o modo da esperança que vinha de Deus».

11. O Salmo 50 inverte a estrutura habitual que vemos quando percorremos e rezamos os Salmos. Normalmente, no Saltério, somos nós que falamos, que pedimos, que suplicamos, que louvamos. Neste Salmo 50, é Deus que toma a palavra, bem à maneira dos profetas, para nos dizer que basta de exterioridades, de sacrifícios de touros e carneiros com hipocrisia; o seu apreço vai para o louvor puro, que brota de um coração purificado, com consequências óbvias na nossa existência quotidiana. É este que anda no caminho reto. E é a este que Deus dá a sua salvação, como se diz no último versículo do Salmo (v. 23), que serve hoje de refrão à nossa música.

 

António Couto



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