Domingo da Santíssima Trindade: «Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo

Ex 34,4b-6.8-9; Dn 3; 2 Cor 13,11-13; Jo 3,16-18

1. A oração e a bênção «em Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo» pressupõem o anúncio de Deus, que é Pai, Filho e Espírito Santo, bem como a fé nesse Deus. O Nome de Deus é posto em relação com o conhecimento que temos dele. Deus manifesta o seu Nome, para que possamos conhecê-lo, para que nos possamos dirigir a ele e entrar em relação com ele. Jesus deu-nos a conhecer Deus como Pai, Filho e Espírito Santo, e é este o núcleo mais profundo da sua mensagem. Na verdade, Jesus dá-nos a conhecer Deus de uma forma não acessível antes dele. O Antigo Testamento conhecia o Deus Criador do céu e da terra, que tem diante de si apenas criaturas, infinitamente diferentes dele, e em que não se entrevê nenhum digno interlocutor de Deus. No plano divino, este Deus parece estar sozinho consigo mesmo habitando uma sublime solidão. Mas Jesus anuncia e manifesta um Deus que, no plano divino, tem um interlocutor de pleno valor: o Deus de Jesus não está sozinho, mas vive em comunhão. Diante do Pai está o Filho, ambos unidos entre si, conhecem-se, compreendem-se e amam-se reciprocamente na plenitude e perfeição divinas, por meio do Espírito Santo.

2. Dando um passo em frente, vê-se então que o Deus de Jesus, enquanto dádiva suprema fundante, princípio da doação, é o Pai. Mas a dádiva suprema do Pai, infinita riqueza, constitui o Filho, termo da doação, infinita pobreza, que tudo recebe. Mas, ao receber tudo, infinita receção, o Filho volta a dar tudo numa infinita doação sem defesa e sem limites. Dizer que Deus é também Filho parece escandaloso. Mas é, ao invés, maravilhoso: o facto de Deus se revelar, não apenas como Pai que dá a vida, mas também como Filho que a recebe e acolhe, e vem partilhar connosco, abre imensas e preciosas perspetivas para a nossa vida humana e espiritual. Levantando uma vez mais o olhar para Deus, Pai que se dá e Filho que se recebe, verificamos então que esta comunhão-comunicação-vida-amor de si-a-si, circular, vertiginosa, tranquila e imperecível, constitui o Espírito Santo, a Pessoa-Dom incriado, para o dizer com a bela expressão de S. João Paulo II na Carta Encíclica Dominum et vivificantem [1986].

3. Deus faz-se ver nos interstícios do nosso humilde chão quotidiano. Foi quanto Nicodemos pôde depreender ao ver os sinais (sêmeîa) que Jesus fazia (cf. João 3,2b-3). Todavia, daqui para a frente, não há passo racional, nosso, que possamos dar. Não resta a Nicodemos outra via (não Tomista) que não seja ir ao encontro de Jesus (cf. João 3,2a), não na sua condição de «o mestre de Israel» (ho didáscalos toû Israêl) (João 3,10), mas do discípulo que sabe depor as suas armas de mestre aos pés de Jesus, «o Mestre que veio de Deus» (apò theoû elêlythas didáskalos) (João 3,2b), o Mestre que não estudou em nenhuma das nossas escolas, como dizem e repetem, admirados, os insuspeitos Judeus (cf. João 7,15). As pequenas mãos de Nicodemos, e as nossas também, não dispõem de nenhum argumento ou instrumento de acesso que nos permita ir além da gélida impassibilidade das leis da natureza. Ora, naquele Jesus que Nicodemos via, havia claros sinais de que «Deus estava com Ele» (ho theòs met’ autoû) (João 3,2b). Em Jesus, era então visível um acesso à vida divina e eterna (zôê aiônios). E foi isso que levou Nicodemos a sair tremulamente do seu estudado quotidiano de «mestre de Israel», para ir ao encontro de Jesus, o Mestre que veio de Deus, e que não estudou em nenhuma das nossas escolas.

4. Chegado junto de Jesus – «o Mestre que veio de Deus» –, Nicodemos – «o mestre de Israel» – tropeça logo nos seus limites. De facto, ouve de Jesus que, para ter acesso à vida divina e eterna (Reino de Deus nos Sinóticos; em João só em 3,3.5), é preciso nascer de novo (ánôthen: «de novo», «do alto», «do princípio» (João 3,3.5.7). Fica completamente baralhado Nicodemos, de tal modo que chega a perguntar a Jesus se está a sugerir que «se pode entrar segunda vez no seio de sua mãe e nascer» (João 3,4). Jesus, que «fala do que sabe» (cf. João 3,11), explica que este novo início não pode ser uma repetição (seria uma contradição), nem o podemos alcançar pelos nossos meios. Não está nas nossas mãos poder chegar a ele. É dom de Deus. É-nos dado no batismo pelo poder criador de Deus. Mas Jesus esclarece ainda que, embora esta vida nova seja dom de Deus, dado por Deus, tal não significa, no que a nós diz respeito, que devemos ficar de braços cruzados, assumindo uma atitude meramente passiva. Na verdade, este início de vida nova, dom de Deus, dado por Deus, requer de nós que acreditemos no Filho Monogénito de Deus (João 3,16). A conexão entre nascer de Deus e acreditar no seu Filho está claramente afirmada em 1 João 5,1: «Todo aquele que acredita que Jesus é o Cristo, nasceu de Deus (ek toû theoû gegénnêtai)».

5. Daqui para a frente é todo o dizer do Evangelho deste dia (João 3,16-18). É, portanto, Jesus que se diz a Nicodemos. Não é a história ou a narrativa de um dizer livresco, amarelecido e anódino. É o Mestre que vem de Deus para dizer Deus a Nicodemos, a mim e a ti. Jesus não diz coisas; diz Deus. Não ensina conteúdos para aprender; dá-nos Deus que nos ama, e que, por amor, nos entrega o seu Filho Monogénito, Jesus, para acreditar, e muitos irmãos para amar. Portanto, Nicodemos fica sem jeito: não lhe compete apenas aprender o que Jesus lhe pode ensinar; compete-lhe receber Jesus, que Deus lhe entrega por amor. E compete-lhe ainda saber que esta enchente de amor, que vem de Deus, é para todos, e não apenas para ele, pelo que, responder a esta enxurrada de amor, passará sempre por amar também, no quotidiano, os seus irmãos.

6. Sim, é tal a grandeza do amor de Deus por nós, que, por amor de nós, entrega até o seu Filho Monogénito para assumir e absorver os nossos erros, saldar as nossas dívidas, suportar os nossos maus tratos e a nossa violência, poder ter mesmo que entregar a sua vida nas nossas mãos violentas e assassinas, sem deixar de nos amar, para nos salvar.

7. A afirmação de Jesus é absolutamente assombrosa, impensável, desarmante: «Deus amou de tal modo o mundo, que lhe entregou o seu Filho Monogénito» (João 3,16), o Filho do seu amor. Para que não nos passe ao lado a força do que acabámos de ouvir, talvez possamos perguntar: Quem é o pai ou a mãe (aqui presente) que está disposto a entregar o seu filho ou filha a um grupo de malvados para, com esse gesto de extrema ousadia, tentar retirar do mal aqueles malvados? Penso que não haverá (aqui) ninguém que se atreva a fazer uma coisa destas. O que nós não somos capazes de fazer, fê-lo Deus por nós, que não somos grande coisa! Entregou-nos o seu Filho querido, e nós cravámo-lo naquela Cruz!

8. O texto do Antigo Testamento que faz equilíbrio com o Evangelho deste Dia Solene da Santíssima Trindade é a chamada magna charta do amor de Deus, que hoje podemos ler no Livro do Êxodo 34,4-9. A primeira frase [«E passou (?abar) o Senhor diante dele (Moisés), e proclamou/invocou (qara?): “Senhor, Senhor”»], é de ligação, mas reveste-se de grande importância. A ação de «passar», por parte de Deus, significa, por um lado, a sua presença livre, boa e bela, e, por outro lado, que nós não podemos pôr sobre Ele a nossa mão, controlá-lo, nossa permanente tentação. «E passou o Senhor» (Êxodo 34,6) cumpre a promessa boa de Deus a Moisés, feita em Êxodo 33,19, de fazer passar diante de Moisés toda a sua bondade e beleza (kol-thûbî). E que esta «passagem» é boa e bela vê-se em contraponto com as visões do Livro de Amós, em que Deus declara: «Veio o fim (qets) para o meu povo, Israel; não continuarei a passar para ele (lo?… ?abar lô)» (Amós 8,2; cf. 7,8). E o facto de o Senhor aparecer a proclamar/invocar (qara?) o seu próprio Nome é coisa única, única vez em toda a Escritura em que o Senhor é sujeito do verbo qara?, na expressão qara? beshem, «proclamar/invocar o Nome». Por norma, a locução qara? beshem YHWH encontra-se nos lábios dos adoradores e suplicantes, e significa aí «invocar o Nome de YHWH». Posta na boca do próprio Deus, a locução há de significar, em primeiro lugar, proclamar, mas sem anular a beleza e a surpresa de o próprio Deus invocar também o seu Nome, a sua plenitude de Amor, de que todos recebemos graça sobre graça (cf. João 1,16). A exegese costuma, neste lugar, acentuar o «proclamar», deixando de lado o «invocar», querendo quase explicar que Deus não pode invocar o seu próprio Nome, isto é, rezar. Mas só este duplo dizer de Deus, de revelação e de oração, constitui a verdadeira revelação de Deus, e assenta as bases para que o crente possa invocar proclamando, ou proclamar invocando, anunciando, rezando, com doçura e estremecimento, este Nome, esta Presença Amante e Fiel. Tão extraordinária maneira de dizer deixa-nos, pois, não no domínio da metafísica, mas da revelação, da anunciação, da oração, da adoração, ato fundador e modelar da nossa oração, contemplação e ação.

9. Não será, neste contexto, de estranhar que, nesta exposição de Deus, Deus exposto diante de Moisés com toda a sua bondade e beleza, como acontece em Êxodo 34,6-7, e que não pode deixar de lembrar Jesus Cristo exposto (proétheto) na Cruz (cf. Romanos 3,25), «exposto por escrito (proegráphê) diante dos nossos olhos» (Gálatas 3,1), Moisés se tenha «apressado a responder ajoelhando-se (qadad) no chão e prostrando-se em adoração (hishtahawah, forma hitpael de shahah), e dizendo: “Por favor, se encontrei graça aos teus olhos (?im-na? matsa?tî hen be?ênêka), Senhor, vem, por favor, Senhor, para o meio de nós, que somos um povo de dura cerviz, e perdoa (salah) a nossa culpa e o nosso pecado”» (Êxodo 34,8-9).

10. Entre esta necessária aproximação teofânica centrada no essencial, e o essencial é sempre pessoal, que é a passagem boa e bela de Deus (Êxodo 34,6a), exposição de Deus, e a oração e adoração humana por ela provocada (Êxodo 34,8-9), sem os fenómenos exteriores habituais, como relâmpagos, trovões, tremores de terra, fogo devorador (cf. Êxodo 19,16 e 18), aí está, dentro do caixilho, o quadro central, que abre com a repetição do Nome «Senhor, Senhor», única vez em toda a Escritura, duplicação certamente com valor enfático, mas também litúrgico, orante, adorante. Deus diz-se a Si mesmo como nos diz a nós: «Moisés, Moisés» (Êxodo 3,4), «Samuel, Samuel» (1 Samuel 3,4), «Saulo, Saulo» (Atos 22,7), com Amor imenso e intenso, orante, comovido, exposto! Convenhamos que, neste tremendo dizer, não conta apenas o facto de Deus se dizer a Si mesmo. Conta também, e talvez sobretudo, o modo como Deus se diz a Si mesmo.

11. O Apóstolo traz-nos hoje, no final da sua correspondência com a comunidade de Corinto (2 Coríntios 13,11-13), a fórmula trinitária com que abrimos a nossa Eucaristia: «A graça do Senhor Jesus Cristo e o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós». É, de facto, em clave trinitária que vivemos e rezamos. É esta a vida eterna (zôê aiônios) a que, por graça, somos chamados e destinados: viver na graça de Jesus Cristo, no amor do Pai e na comunhão do Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém.

 

António Couto



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