Domingo IV da Quaresma: «Só um cego é que (não) vê»

1 Sm 16,1b.6-7.10-13; Sl 23; Ef 5,8-14; Jo 9,1-41

1. Com o olhar cada vez mais fixo na Cruz Gloriosa, em que foi entronizada a Luz que dá a Vida verdadeira, batizados e catecúmenos continuam a sua «caminhada» quaresmal: memória do batismo [= execução do programa filial batismal] para os batizados, preparação para o batismo por parte dos catecúmenos (Sacrosanctum Concilium 109), que têm neste Domingo IV da Quaresma, Domingo da dádiva da Luz, os seus segundos «escrutínios»: segunda «chamada» para a Liberdade.

2. O Evangelho, imenso e de extraordinária riqueza, narra a dádiva da Luz por Jesus à nossa pobre e cega humanidade (João 9,1-41). Compõem este Evangelho, imenso e rico, sete cenas ou cenários em que vão entrando diferentes atores: a primeira cena (v. 1-7) traz-nos o encontro de Jesus e dos discípulos com um cego de nascença, mostra as suas diferentes maneiras de ver, e deixa claro que é a postura criadora e redentora de Jesus que cura o cego; a segunda cena (v. 8-12) mostra-nos a reação e discussão estéril que se gera entre os vizinhos e conhecidos, atónitos e confusos, quando veem agora aquele que antes era cego e pedinte, e que agora vê; a terceira cena (v. 13-17) traz para a liça os fariseus, que também discutem o assunto, também não o entendem nem se entendem, apenas se detendo de forma legalista sobre o facto de aquele homem ter sido curado em dia de sábado; a quarta cena (v. 18-23) mostra-nos a reação dos pais do cego que agora vê, e que não se querem comprometer, dando sobre o caso apenas respostas evasivas; a quinta cena (v. 24-34) dá lugar a um interrogatório a que os fariseus submetem o cego curado, dando-nos acesso às assertivas e interessantíssimas respostas deste; a sexta cena (v. 35-38) mostra-nos de novo a presença de Jesus, que até aqui esteve ausente, e que tem um último encontro com o cego curado, abrindo-lhe agora os olhos para a fé, com o cego a responder prostrando-se diante de Jesus; a sétima e última cena (v. 39-41) põe Jesus em confronto com os fariseus, com Jesus a apresentar, por assim dizer, a chave de leitura do inteiro episódio e da sua missão, afirmando: «Foi para um julgamento que Eu vim a este mundo: para que aqueles que não veem, vejam, e aqueles que veem se tornem cegos», deixando assim os fariseus cada vez mais às escuras.

3. Voltemos ao princípio. Logo a abrir a primeira cena, o texto mostra-nos Jesus passando sempre (parágôn: particípio presente durativo) (v. 1), e executando a «obra» daquele que o enviou (v. 4). Nesta sua condição de «passageiro» total, pascal, no sentido «que de Deus veio e para Deus voltava» (João 13,3), Jesus viu um cego de nascença (v. 1), e os seus discípulos também viram. Mas Jesus e os discípulos não viram a mesma coisa. Os discípulos viram um cego, e por detrás do cego viram o encadeado «pecado-doença», e por detrás do encadeado «pecado-doença» viram a manifestação do Deus-garante da «ordem da retribuição», em que a doença é fruto do pecado. A pergunta que fazem a Jesus é elucidativa: «Mestre, quem pecou, ele ou os seus pais, para que tivesse nascido cego?» (v. 2). Jesus viu um cego, mas não viu naquela cegueira um castigo de Deus; viu, antes, que «era preciso» (deî) (v. 4) aquele cego «para que se manifestassem nele as obras (tà erga) de Deus» (v. 3). Digamos as coisas de outra maneira: Jesus viu um cego, e como que disse: preciso deste cego, para que Deus se manifeste nele e através dele! E como é que Deus se podia manifestar naquele cego? Através das «obras» (tà érga) daquele que Ele enviou (v. 4), fazendo passar aquele cego do domínio da cegueira para a liberdade da glória dos filhos de Deus, para usar a expressão feliz de Romanos 8,21. Sendo a Luz do mundo (João 8,12; 9,5), Jesus concede o dom da vista ao cego de nascença, que será depois acompanhado do dom da Luz (Iluminação) em ordem à contemplação das coisas divinas (veja-se a propósito Hebreus 6,4-5: texto batismal espantoso, que aqui me permito recordar: «É, na verdade, impossível que àqueles que foram iluminados uma vez, tendo saboreado o dom celeste e feitos participantes do Espírito Santo, e tendo saboreado a Palavra de Deus e a força (dýnamis) do mundo futuro…»). Atente-se bem que o cego de nascença recebeu de Jesus o dom da vista da luz do dia, e receberá depois, na sexta cena, o dom batismal da «divinização» para ver e ouvir as coisas divinas (v. 35-38). Perante este segundo dom, também os fariseus eram cegos de nascença, e não o sabiam!

4. Significativamente, o cego de nascença recupera a vista e recebe o dom da Luz, lavando-se na «piscina de Siloé» (v. 7). Faço notar que «piscina» se diz em grego kolymbêthra, nome que ainda hoje para a Igreja grega significa «fonte batismal». E Siloé é a grecização do aramaico shlîha, hebraico shalîah, que quer dizer «enviado». Santo Agostinho comenta, sempre de forma acertada e penetrante: «Sabeis bem quem é o enviado; se Cristo não tivesse sido enviado, nenhum de nós teria sido desviado do pecado. O cego lavou os olhos naquela fonte que se traduz “Enviado”: foi batizado em Cristo». A «fonte batismal» do «enviado» de Deus, daquele-que-vem-de-Deus, o Filho do Homem. Ninguém pediu ou intercedeu para que este cego fosse curado. É obra criadora de Jesus, das ações simbólicas operadas por Jesus (v. 6.11.14.15), mas também da ação do cego que vai lavar-se à piscina de Siloé, no seguimento da Palavra poderosa de Jesus. O cego chega rapidamente à luz do dia. A luz da fé, essa é gradual e supõe um percurso a fazer, marcado por diferentes etapas, verificáveis nos sucessivos dizeres do cego curado acerca de Jesus: «não sei» (v. 12); «é um profeta» (v. 17); «vem de Deus» (v. 33); «eu creio, Senhor» (v. 38).

5. A segunda cena (v. 8-12) mostra-nos os vizinhos e conhecedores do cego agora curado numa discussão que roça o ridículo, pondo em causa a própria identidade do cego curado, tanto que uns diziam: «É ele!»; outros diziam: «Não é ele, mas é outro parecido com ele»; e o próprio cego afirmava: «Sou eu!», todos estes dizeres amontoados no v. 9. Finalmente, resolvem dirigir-se ao cego e perguntam-lhe: «Como é que te foram abertos os olhos?» (v. 10), ao que o cego responde com notável clareza: «O homem que se chama Jesus fez lodo, aplicou-mo nos olhos, e disse-me: “Vai a Siloé, e lava-te!”. Eu fui, lavei-me e recobrei a vista» (v. 11). O cego curado sabe dizer tudo o que Jesus lhe fez e lhe ordenou, mas não sabe dizer quem é Jesus, nem onde esteja (v. 12). Não conseguindo compreender o incompreensível, e, na tentativa de se fazer mais luz, levaram o cego aos fariseus, e aí está já a terceira cena (v. 13-17). Instado de novo a descrever como tinha sido curado, o cego repetiu o que já tinha dito antes. Entretanto, sabendo que Jesus tinha feito lodo em dia de sábado, também os fariseus se dividiram entre si, dizendo uns que um homem que trabalha em dia de sábado não pode estar em relação com Deus, porque é um pecador, enquanto outros se interrogavam, dizendo: «Mas como pode um pecador fazer coisas assim?». Acabaram por perguntar ao cego o que pensava do homem que lhe abriu os olhos, e ele respondeu: «É um profeta!» Os fariseus não podem acreditar que aquele homem fosse cego e que tenha recobrado a vista. É por isso que chamam os seus pais, abrindo-se aqui a quarta cena (v. 18-23), e lhes perguntam se aquele era o seu filho, que se diz que terá nascido cego, e como é que ele passou a ver? Os pais respondem que sim, que aquele é seu filho, e que nasceu cego. Mas negam saber o modo como foi curado, e negam igualmente saber quem o curou. Estes pais não se querem comprometer, não querem problemas, pois sabem que, se dissessem a verdade, teriam de enfrentar a hostilidade das autoridades, e teriam de viver isolados social e religiosamente. É mais fácil fechar os olhos para não verem a luz.

6. A quinta cena (v. 24-34) leva outra vez os judeus e fariseus ao encontro do cego curado. Também porque os pais, para evitar problemas, tinham saído da cena anterior, dizendo aos fariseus mais ou menos isto: «Ora essa, perguntai-lho a ele, que já tem idade para responder». Os fariseus começaram com uma afirmação: «Nós sabemos que esse homem é um pecador». O cego curado atalhou de pronto: «Se é pecador, não sei. Mas uma coisa sei: eu era cego, e agora vejo». Insistiram então que lhes contasse o que fez e como fez o homem que o curou, ao que o cego respondeu: «Já vo-lo disse, e não prestastes atenção; por que quereis ouvi-lo outra vez?». E avançou uma forte insinuação: «Quereis, porventura, tornar-vos também seus discípulos?». Ouvindo isto, insultaram-no, dizendo: «Discípulo dele és tu! Nós somos discípulos de Moisés! E sabemos que Deus falou a Moisés, mas esse não sabemos de onde (póthen) é» (v. 29), ao que o cego respondeu com penetrante clarividência e fina ironia, apontando a cegueira deles: «Isso é espantoso (tò thaumastón): vós não sabeis de onde (póthen) Ele é; e, no entanto, Ele abriu-me os olhos!» (v. 30). Que é como quem diz: só não vê quem não quer! Ou então: só um cego é que não vê! A sexta cena (v. 35-38) traz-nos de novo a presença e a iniciativa de Jesus, que esteve ausente desde a primeira cena, em que também tomou a iniciativa de abrir os olhos do cego à luz do dia. Estando embora ausente nas cenas 2, 3, 4 e 5, foi sempre dele que se falou, e foi sempre face a Ele que os diferentes grupos foram tomando posição. Aparece agora outra vez na sexta cena, iniciativa sua para um último encontro com o cego de nascença a quem tinha aberto os olhos para a luz do dia. Jesus aparece agora para lhe abrir os olhos para a luz da fé. E também o cego curado reage, prostrando-se em adoração diante de Jesus, último gesto seu, e que se faz unicamente a Deus. E deixa no sétimo e último cenário (v. 39-41) a chave de leitura do inteiro episódio e da sua missão, afirmando, de modo a que os fariseus possam ouvir: «Foi para um julgamento que Eu vim a este mundo: para que aqueles que não veem, vejam, e aqueles que veem se tornem cegos», deixando assim os fariseus cada vez mais às escuras.

7. Temos todos algo a ver com o cego de nascença: os batizados receberam como ele o dom batismal da Luz para ver e ouvir, viver e celebrar a vida divina; os catecúmenos recebê-lo-ão. Temos todos a ver com o Enviado, Aquele-que-vem: Ele é o único enviado do Pai para fazer a sua «obra»; nós somos enviados por Ele (João 20,21) para continuar no mundo a sua «obra». Mas temos de reconhecer que muitas vezes ainda vemos as pessoas e as coisas de forma bem diferente de Jesus, como os discípulos na primeira cena. Ou os vizinhos, os fariseus, os pais… Importa que a nossa conduta seja a do cego, que segue as indicações de Jesus e que, cena após cena, vai dando testemunho de Jesus.

8. O Primeiro Livro de Samuel 16,1-13 serve-nos hoje um texto delicioso em clara sintonia com o Evangelho. Trata-se da unção real do menor dos filhos de Jessé, David, um garoto que andava nos montes a guardar o rebanho. Nem entrava nas contas do seu pai. Teve de ser o profeta Samuel a avivar-lhe a memória, perguntando a Jessé, depois de este lhe ter apresentado sete filhos e não ter dado sequer a entender que ainda tinha mais um: «Acabaram os teus filhos?» (1 Samuel 16,11). Só aqui é que Jessé se apercebeu que, afinal, ainda tinha mais um. Mas, como David era ainda um garoto, estava Jessé longe de pensar que passasse por ele a escolha de Deus! A sua presença é, portanto, tão paradoxal como a do cego de nascença! Mas Deus não vê como nós. Deus vê o coração, e nele deposita o seu Espírito (1 Samuel 16,13; Romanos 5,5). Levamos este tesouro em vasos de barro… (2 Coríntios 4,7). Para que brilhe mesmo a Luz de Deus, e não a nossa (2 Coríntios 4,6).

9. Cumpre-nos ler também hoje o grande texto da Carta aos Efésios 5,8-14. Iluminados pela Luz da Luz, que é também a Luz do mundo, somos a Luz do mundo: constatação, mas sobretudo desafio e programa! Somos, por isso, «filhos da Luz» (Efésios 5,8; 1 Tessalonicenses 5,5), que é um dos termos técnicos de «divinização», e «filhos do dia» (1 Tessalonicenses 5,5). Chamados das trevas para a luz maravilhosa de Deus (1 Pedro 2,9), devemos tornar-nos operadores das «obras da Luz», que não têm parte com as «obras das trevas». O Apóstolo [= Enviado] dá testemunho do Evangelho e continua no mundo o Evangelho. Passando como Jesus. Vendo como Jesus. Aí está a nossa missão.

10. Tempo para nos deixarmos conduzir pela mão carinhosa e pela voz maternal e melodiosa do Bom Pastor, cantando o Salmo 23. Sim, Ele recebe bem os seus hóspedes: faz-nos uma visita guiada pelos seus prados muito verdes, cheios de águas muito azuis, unge com óleo perfumado a nossa cabeça, estende no chão do seu céu a «pele de vaca» (shulhan), que é a sua mesa, serve-nos apetitosos manjares e vinhos generosos…

 

António Couto



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