Domingo V do Tempo Comum: «Um abraço de Alma a Alma»

1. Entrámos no Domingo passado (IV do Tempo Comum) no Sermão da Montanha, e fomos logo felicitados por aquele encantatório rol de felicitações, em que por nove vezes se repetia a palavra FELIZES, sendo as oito primeiras formuladas na terceira pessoa do plural, e a última, a nona, formulada na segunda pessoa do plural, que aqui recuperamos: «FELIZES sois vós, quando vos ultrajarem e perseguirem e, mentindo, disserem contra vós toda a espécie de mal por causa de mim (éneken emoû)» (Mateus 5,11). Não, não se trata de acentuar qualquer conduta moral, mas de acentuar a total adesão a Cristo. Nas primeiras oito felicitações, é Deus que dá os parabéns aos pobres e desqualificados, aos últimos da sociedade, àqueles que não estão habituados a receber parabéns de ninguém, mas que não tiram os olhos de Deus nem deixam de para Ele levantar as mãos. O uso da terceira pessoa dá a estas felicitações uma forma generalizada e abstrata. Ao passar a formulação para a segunda pessoa do plural [«Felizes sois vós…»], é àquela audiência concreta, ali presente, que Jesus se dirige, vinculando-a a si [«por causa de mim»], mas expondo-a também face a um mundo adverso e perseguidor. Todavia, estes pobres, perseguidos pelos homens, são felicitados por Deus. O seu mundo não é esquizofrénico: não se separam de Deus, mas tão-pouco se separam do mundo que tudo faz para os ver separados.

2. O Evangelho deste Domingo V do Tempo Comum (Mateus 5,13-16) continua a glosar as notas da nona Felicitação, e mantém acesa a clave do «Vós sois» [uns-com-os-outros e uns-para-os-outros, e não uns-contra-os-outros], sem qualquer cedência a esquizofrenias nem ao moderno individualismo ocidental, e, nos tempos que correm, praticamente mundial, em que se podem contar cerca de oito biliões de solidões alérgicas. Hoje começamos por estender o texto do Evangelho diante dos nossos olhos, para melhor lhe podermos captar a importância de que se reveste, mas também o sabor e a sabedoria, sem descurar a forma direta de que se reveste no seguimento do v. 11.

«Vós sois o sal da terra. Mas se o sal se tornar insípido, com que o salgaremos? Não serve para nada, senão para se deitar fora e ser calcado pelos homens.

Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte. Não se acende uma lâmpada para a colocar debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro para alumiar todos os que estão na casa.

Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus».

3. Aquele «Vós» (hymeîs) a abrir os v. 13 e 14 dá ênfase ao «Vós sois» que introduz o v. 11, e ajuda-nos a identificar com SAL E LUZ aqueles que são perseguidos «por causa de Jesus». Acabámos de ouvir acordes como estes: «Vós sois o SAL da terra» (Mateus 5,13); «Vós sois a LUZ do mundo» (Mateus 5,14). O SAL dá sabor. A LUZ alumia. O mundo inteiro por horizonte. É, portanto, necessário abrir os horizontes. O mundo é a nossa casa. Compreenda-se já que o SAL e a LUZ são belíssimas metáforas das OBRAS que fazemos: «Assim brilhe a vossa LUZ diante dos homens, para que vejam as vossas BOAS OBRAS» (Mateus 5,16). Mas entenda-se também de imediato que «as nossas OBRAS BOAS» não são do domínio das nossas mãos (a LUZ escapa-nos das mãos), mas do domínio da Graça de Deus que, como em Maria, também em nós «faz grandes coisas» (Lucas 1,49). São mesmo as OBRAS que se devem ler no cone de luz da LUZ e do SAL. De resto, é sabido que, quimicamente falando, o SAL não pode perder o seu sabor. Mas um homem sem OBRAS BOAS é insípido e inútil. O SAL só é inútil enquanto está retido no saleiro. E a LUZ enquanto está impedida de brilhar. E nós, quando nos blindamos dentro das portas e das janelas do nosso egoísmo e comodismo. É assim que nos tornamos insípidos e deixamos apagar a nossa luz. O verbo grego môraínô, que aparece no texto para dizer que o sal «se torna insípido» (v. 13), é usado mais habitualmente para dizer o homem que «se torna estúpido». Podemos estar perante um daqueles duplos sentidos que tantas vezes encontramos na expressão escrita. E pode bem ser disso que se trata, dado que, em hebraico e aramaico, o verbo tapel significa ao mesmo tempo «ser insípido» e «ser estúpido». E não faltam indicadores rabínicos a referir que, com a vinda do Messias, «a sabedoria dos escribas se há de tornar insípida».

4. É ainda necessário dar um passo em frente, e entender bem que aquele plural «Vós sois» se reveste seguramente de significado comunitário, como é usual em Mateus, que nunca perde de vista a comunidade eclesial. Assim, sois vós em comunidade que sois a Luz do mundo, que sois o Sal da terra, e não cada um por si, isoladamente. Assim também a lâmpada é para alumiar todos os que estão na casa, toda a comunidade da família de Deus. E o sal, o sal da aliança (Levítico 2,13), está lá também para dar o autêntico sabor da aliança a toda a oferta feita pela comunidade a Deus (Êxodo 30,25; Levítico 2,13), e a todo o recém-nascido a nós dado por Deus (Ezequiel 4,16).

5. Bem se vê que o SAL e a LUZ são metáforas que mostram a comunidade reunida com Jesus na Montanha e as BOAS OBRAS que deve realizar. Finalidade: para que seja glorificado «o vosso Pai que está nos Céus». A expressão «o vosso Pai que está nos Céus» é usada por Mateus apenas no Sermão da Montanha. Assim, percebemos melhor que estamos em casa, e que temos de aprender a ser filhos e irmãos.

6. O Livro do Deuteronómio atira-se contra a nossa tranquila indiferença: «Se houver no meio de ti qualquer irmão necessitado, não endureças o teu coração e não feches a tua mão» (Deuteronómio 15,7). Precisamos, hoje mais do que nunca, de viver ao estilo de Jesus, Bom Pastor, e ao estilo do Bom Samaritano, com «um coração que vê», para usar a expressão feliz de Bento XVI (Deus caritas est, 25 de dezembro de 2005, n.º 31).

7. É assim que Isaías 58,10 nos desafia literalmente (aí está o sabor das traduções literais!) a «oferecer ao faminto a tua alma (nefesh),/ e saciar a alma (nefesh) do oprimido». Trata-se de muito mais do que uma simples ajuda material. É um abraço entre duas almas, entre duas vidas, entre dois intensos desejos de viver, entre dois alentos de vida! Portanto, com o Deus criador e providente sempre por detrás.

8. Só entende esta intensidade quem sabe que a sua LUZ é reflexa, porque a recebe de Deus. É assim, com «um coração que vê» à flor da pele ou da alma, que S. Paulo não se apresenta no meio de nós ou da comunidade de Corinto com fortes argumentos da sabedoria humana, conforme a sua lição de hoje (1 Coríntios 2,1-5). Ele quer que nós compreendamos bem que a nossa fé assenta em Cristo e no seu poder, e não em qualquer humano raciocínio e respetiva força. «A fraqueza de Deus é mais forte do que os homens» (1 Coríntios 1,25). E «quando eu sou fraco, então é que eu sou forte» (2 Coríntios 12,10). Portanto, Paulo não se apresentou em Corinto cheio de si, mas cheio de Deus. Não se anunciou (kêrýssô) a si mesmo, mas a Cristo Jesus (2 Coríntios 4,5). Sim, é a Luz que devemos saber levar em vasos de barro, para que se veja bem que esse tesouro e esse poder (dýnamis) vêm de Deus, e não de nós (2 Coríntios 4,7). É o poder (dýnamis) de Deus que move Paulo (1 Coríntios 2,5), e que nos deve mover também a nós.

9. Com tanto Sal na mão e tanta Luz a alumiar o coração, o nosso tempo é sempre tempo dado para nos questionarmos de verdade, pondo em causa os nossos egoísmos e as nossas portas fechadas à graça de Deus e aos irmãos que Ele nos deu. Com base no sentido do SAL e da LUZ, pode abrir-se diante de nós um tempo de verificação: cheio de mim ou cheio de Ti? Estou no centro das atenções ou sei orientar todos os olhares para Ti? Conheço-Te e celebro-Te e dou testemunho da Tua Ressurreição? Os meus atos anunciam a tua Vinda, isto é, revelam e desvelam a tua presença permanente? Ou será que o meu olhar é mau porque Tu és Bom? (Mateus 20,15; cf. Ben Sira 14,9-10). Por que é que eu tenho tão poucos (ou nenhuns) encontros CONTIGO marcados na minha agenda? O que faço eu com o relógio na mão o dia inteiro? Por que corro tanto e para onde corro tanto? Debruço-me com amor, e com tempo, sobre os meus irmãos abandonados à beira do caminho ou postos ali mesmo à entrada da minha porta? A minha casa está construída sobre a rocha ou sobre a areia? E a LUZ alumia ou está apagada? E o SAL dá sabor à minha vida e à vida dos outros?

10. O Salmo 112 é irmão gémeo do Salmo 111. Neste é Deus o sujeito. Naquele o homem justo, «imitador de Deus». O Salmo de hoje tem apenas 77 palavras divididas por dez versículos, em nove dos quais se desenha o homem justo, de coração e mãos largas para dar com abundância. Ao ímpio é reservado apenas um versículo, e é retratado só para ver o sucesso do justo e para se roer de raiva e de inveja até se atolar na ruína. O justo é uma casa iluminada. O ímpio desaparece nas trevas.

 

António Couto



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