Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus

Nm 6,22-27; Sl 67; Gl 4,4-7; Lc 2,16-21

1. Oito dias depois da Solenidade do Natal do Senhor, que a liturgia oriental designa significativamente por «a Páscoa do Natal», eis-nos no Primeiro Dia do Ano Civil de 2023, tradicionalmente designado como Dia de «Ano Bom», a celebrar a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus. A figura que enche este Dia, e que motiva a nossa Alegria, é, portanto, a figura de Maria, na sua fisionomia mais alta, a de Mãe de Deus, como foi solenemente proclamada no Concílio de Éfeso, em 431, mas já assim luminosamente desenhada nas páginas do Novo Testamento.

2. É assim que a encontramos no Lecionário de hoje. Desde logo naquela menção sóbria, e ousamos mesmo dizer pobre (na riqueza espiritual que o termo contém), com que Paulo se refere à Mãe de Jesus, escrevendo aos Gálatas: «Deus enviou o seu Filho, nascido (genómenon) de mulher, nascido (genómenon) sujeito à Lei» (Gálatas 4,4). Duplo nascimento: nascido de mulher, isto é, como todos nós, nosso irmão em humanidade; nascido sujeito à Lei, isto é, membro do povo hebreu, a quem Deus tinha dado a sua Lei. Nesta linha breve e densa e, todavia, com uma repetição vocabular só aparentemente desnecessária, aparece compendiado o mistério da Incarnação, ao mesmo tempo que se sente já pulsar o coração da Mariologia: Maria não é grande em si mesma; é, na verdade, uma «mulher», verdadeiramente nossa irmã na sua condição de humana criatura. Não é grande em si mesma, mas é grande por ser a Mãe do Filho de Deus, e é aqui que ela nos ultrapassa, imaculada por graça, bem-aventurada e bem-aventurança, nossa mãe na fé e na esperança. Ela é a Mãe do Filho de Deus e filho seu. Para falar do nascimento de João, refere o texto, de forma um tanto ou quanto indeterminada, que Isabel «deu à luz um filho» (egénnêsen hyión) (Lucas 1,57). Mas para falar do nascimento de Jesus, o texto diz, de um modo todo particular, que Maria deu à luz «o seu filho o primogénito» (tòn hyiòn autês tòn prôtótokon) (Lucas 2,7). O facto desta designação de Jesus como «o primogénito» não significa que Maria tenha tido outros filhos depois dele, mas revela tão-só a sua singular consagração a Deus, como vinha referido no Livro do Êxodo 13,2: «Consagra-me todo o primogénito, aquele que abre o ventre materno, entre os filhos de Israel, dos homens e dos animais. Ele é meu». É por isso que ao episódio do Evangelho de hoje (Lucas 2,16-21) se segue imediatamente o episódio da «apresentação ao Senhor» (Lucas 2,21-22). Maria não é grande em si mesma; vem-lhe de Deus essa grandeza. Vem-lhe do facto de ser a Mãe deste Filho, seu e de Deus.

3. O Evangelho deste Dia de Maria guarda também uma preciosidade, quando Lucas nos diz que «todos os que tinham escutado as coisas faladas pelos pastores ficaram maravilhados, mas Maria guardava (synetêrei) todas estas Palavras (tà rhêmata), compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,18-19). Em contraponto com o espanto de todos os que ouviram as palavras dos pastores, Lucas pinta um quadro mariano de extraordinária beleza: «Maria, ao contrário, guardava todas estas Palavras, compondo-as no seu coração». Há o espanto e a maravilha que se exprimem no louvor e no canto, e há o espanto e a maravilha que se exprimem no silêncio e na escuta qualificada. Maria, a Senhora deste Dia, aparece a guardar com ternura todas estas Palavras, todos estes acontecimentos que falam e não esquecem. O verbo guardar implica atenção cheia de ternura, como quem leva nas suas mãos uma coisa preciosa. Este guardar atencioso e carinhoso não é um ato de um momento, mas a atitude de uma vida, uma vez que o verbo grego está no imperfeito, que implica duração. Como quando o povo de Deus reza confiante: «Guardai-nos e defendei-nos como coisa própria vossa».

4. O outro verbo belo mostra-nos Maria como que a compor, isto é, a «pôr em conjunto» (symbállô), a organizar, para melhor entender, e para melhor dar a entender. É como quem, com aquelas Palavras, compõe um Poema, uma Sinfonia, e se entretém a vida inteira a trautear essa melodia e a conjugar novos acordes de alegria. E é dito ainda, num pleonasmo único na Escritura Santa, que Maria «concebeu no ventre» (syllambánô en tê koilía) (Lucas 2,21). De Isabel apenas se diz que «concebeu» (syllambánô) (Lucas 1,24). Redundância. Música divina. O ventre de Maria em consonância com o «ventre das misericórdias do nosso Deus» (Lucas 1,78), causa da Luz que nas alturas se levanta e visita toda a gente, causa do Rebento que na nossa terra germina, que a nossa terra aquece e alumia, Jesus, filho de Deus e de Maria, a quem neste oitavo Dia é posto o Nome de Jesus, Nome vindo de Deus através do anúncio de Gabriel (Lucas 1,31). Na Escritura Santa, a Luz que no céu nasce e irradia, como uma estrela, e o Rebento tenro, que na nossa terra germina, apontam e são figura do Messias, e dizem-se com o mesmo vocábulo grego, anatolê (hebraico, tsemah).

5. Esta solicitude maternal de Maria, habitada por esta imensa melodia que nos vem de Deus, levou o Papa Paulo VI, S. Paulo VI, a associar, desde 1968, à Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a celebração do Dia Mundial da Paz. Hoje é já o 56.º Dia Mundial da Paz que se celebra, a que o Papa Francisco, no seguimento da dura experiência da luta nos últimos anos contra a pandemia, apôs o lema «Ninguém pode salvar-se sozinho». Só que à pandemia sucedeu, entretanto, a guerra absurda que assola violentamente uma parte da Europa e cujos estilhaços se fazem sentir em todo o continente e um pouco por toda a parte. Guerra absurda, porque não se trata de uma guerra entre dois exércitos para tal preparados e armados. Trata-se de um despejo da nojenta estupidez que nos habita sobre uma população humana pacífica, normal e sensata, que nada tem a ver com tamanha, incomensurável e incompreensível cegueira, que envergonha a inteira humanidade. Neste contexto, o suspiro humano pela paz transformou-se num grito imenso que há de com certeza atingir o céu. A paz é mais, muito mais do que a ausência de guerras. A paz é uma refeição saborosa, servida por Deus aos seus filhos. Na verdade, não temos sabido gerir como filhos e irmãos o pão nosso de cada dia, que em cada dia nos é dado. Daí que, do meio da guerra que a todos nos atinge, se levante outra vez este grito dorido pela paz. E é bom que não deitemos a perder esta oportunidade que Deus nos dá para tomarmos consciência de que estamos doentes e nos temos vindo a arrastar no lamaçal da banalidade, da indiferença e da equivalência, em que vale tudo e tudo vale o mesmo, talvez a mais grave doença que afeta a humanidade deste tempo sem fontes e sem horizontes. Na verdade, nesta «noite do mundo», em que domina a escuridão, literal na Ucrânia, e a nefasta atração pela morte, palpável na guerra, mas também nas já consideradas conquistas da liberdade, como sejam a interrupção voluntária da gravidez e a eutanásia, tudo nos aparece sem Deus, sem rosto e sem rumo, só com fumo, sem irmão, sem irmã, tudo à medida sem medida da hipertrofia do «eu», que julga poder dispor de uma soberania e autonomia ilimitadas, sem sequer nos apercebermos do número cada vez mais elevado de deserdados, abandonados, refugiados e velhinhos que já perderam a soberania e a quem já roubámos a autonomia e a liberdade, e que continuamos a atirar com disfarçada subtileza para o sótão das inutilidades.

6. Ao contrário, de Deus vem sempre um mundo novo, belo, maravilhoso. Tão novo, belo e maravilhoso, que nos cega, a nós que vamos arrastando os olhos cansados pela lama. Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: «O Senhor te abençoe e te guarde./ O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável./ O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz» (Números 6,24-26).

7. O Salmo 67 é uma oração de bênção em forma de petição. Em termos técnicos, equivale a uma epiclese: não «eu te bendigo», mas «Deus nos bendiga». O nosso Salmo recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26, como a graça, a luz, a benevolência, a paz, pondo o plural onde estava o singular, por assim dizer, «democratizando» a bênção, agora dirigida a todos, onde, na bênção sacerdotal do Livro dos Números, se dirigia apenas a Israel.

8. Olhada por Deus com singular olhar de Graça foi Maria, também Pobre, também Feliz, Bem-aventurada, Santa Maria, Mãe de Deus, que hoje celebramos em uníssono com a Igreja inteira. Para ela elevamos hoje os nossos olhos de filhos enlevados.

9. Que seja, e pode ser, Deus o quer, e nós também podemos querer, um Ano Bom, cheio de Paz, Pão e Amor, para todos os irmãos que Deus nos deu! E que Santa Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe nos abençoe também. Amen!

Que Deus nos abençoe e nos guarde,

Que nos acompanhe, nos acorde e nos incomode,

Que os nossos pés calcorreiem as montanhas,

Cheios de amor, de paz e de alegria,

Que a tua Palavra nos arda nas entranhas,

E nos ponha no caminho de Maria.

O amor verdadeiro está lá sempre primeiro.

fiat que disseste, Maria, é de quem se fia

Num amor maior do que um letreiro.

Vela por nós, Maria, em cada dia

Deste ano inteiro,

 

Para que levemos a cada enfermaria,

A cada periferia,

Um amor como o teu, primeiro e verdadeiro.

António Couto



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