Domingo II do Advento: «Preparai o Caminho do Senhor»

Is 11,1-10; Sl 72; Rm 15,4-9; Mt 3,1-12

1. O texto do Evangelho deste Domingo II do Advento (Mateus 3,1-12) apresenta algumas notas salientes que reclamam a nossa atenção. 1) É notória a sintonia de João com Jesus, dado que ambos abrem o seu ministério, dizendo as mesmas palavras: «Convertei-vos, porque se fez próximo o Reino dos Céus» (Mateus 3,2; cf. Mateus 4,17). 2) O ministério de ambos é colocado com referência a belas e indicativas paisagens textuais de Isaías: «Uma voz clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas”», é o lema do ministério de João Batista, como se pode ver em Mateus 3,3, citando Isaías 40,3. Por sua vez, «Terra de Zabulão e terra de Neftali, caminho do mar, região de além do Jordão, Galileia dos gentios: o povo que jazia nas trevas viu uma grande luz…», é o lema do ministério de Jesus, como se pode ver em Mateus 4,14-16, cumprindo Isaías 8,23-9,1. 3) Ambos abrem no deserto a sua missão, evocando o Êxodo do Egito, o novo Êxodo da Babilónia (Ezequiel 20,33-38) e o Êxodo do noivado de Deus com Israel (Oseias 2,16-23), mas também a febre messiânica que situava no deserto o princípio da renovação escatológica (cf. Mateus 24,26): em todos os casos, o deserto evoca a proximidade com Deus, o povo «a céu aberto» com Deus. 4) A indumentária de João Batista (Mateus 3,4) evoca a de Elias (2 Reis 1,8). Em toda a Escritura, só os dois se vestem de pêlos de camelo com um cinturão de couro. De resto, também Jesus identifica João Batista com Elias (Mateus 11,14; 17,12-13). De notar ainda que, na interpretação de Malaquias 3,23, o ministério de Elias não tem a ver com a vinda de outro profeta, mas com a Vinda do próprio Deus. Sem equívocos então: em Jesus não se trata da vinda de outro profeta, mas da Vinda do próprio Deus!

2. É para esta Vinda de Deus em Jesus que todos se devem preparar. E é porque esta Vinda é vista como importante e decisiva, que é requerida uma preparação. A Vinda d’Aquele-que-Vem é tão importante, que não basta ficar tranquilamente à espera d’Ele. É preciso preparar-se para essa Vinda. Fazer com que todas as pessoas se preparem para esta Vinda, eis a missão de João Batista, que assume traços específicos. De modo estranhamente diferente dos outros profetas, João Batista não vai pregar para as cidades e aldeias ao encontro das pessoas, mas vai para o deserto, e são as pessoas que têm de ir ter com ele. E não são apenas algumas. São todas. O texto diz expressamente «toda a Judeia» e «toda a região à volta do Jordão» (v. 5). É ainda de salientar que, para se deslocarem ao deserto, as pessoas têm de deixar os seus afazeres habituais. Deixar tudo para trás e ir para o deserto, lugar que evoca, de muitos modos, a proximidade de Deus, como já mostrámos atrás em 1.3). É esta realidade que exige adequada preparação. Para ter acesso à Presença de Deus e ao seu serviço, impõe-se que se tenha um coração puro (Salmo 24,3-5), pelo que é necessário fazer as necessárias imersões ou abluções com água pura. Não é que a água lave o coração, mas é disso um indicador. Estas purificações rituais com água pura, banhos e outras abluções, eram feitas pelas próprias pessoas. Mas agora estamos perante um facto novo. Não são as pessoas que se purificam na água. É João Batista que as introduz na água. E para significar e implicar a necessária purificação, não apenas exterior, mas sobretudo interior, João exige das pessoas a confissão dos pecados e a conversão, bem como a imersão ou batismo nas águas do Jordão, que traz à memória a travessia operada pelo povo de Israel, vindo do deserto, antes de entrar na Terra Prometida (Josué 3). E é também o rio que Elias atravessa antes de ser arrebatado para o céu (2 Reis 2,1-18). Ao rio Jordão anda, pois, associada a aproximação a Deus, à sua Vida, e aos seus dons.

3. E que significado atribuir à anotação da incompetência (ikanós) de João para «retirar» ou descalçar as sandálias d’Aquele-que-Vem (v. 11)? Será simplesmente uma confissão de humildade por parte de João face a Alguém que lhe é incomparavelmente superior? Esta tonalidade está certamente presente, mas não esgota a metáfora das sandálias. Trata-se, desde logo, de um dizer importante, pois encontramo-lo por cinco vezes no Novo Testamento: Mateus 3,11; Marcos 1,7; Lucas 3,16; João 1,27; Atos dos Apóstolos 13,25. Num célebre artigo, intitulado «As sandálias do Messias Noivo», Luís Alonso-Schökel levou este dizer e esta metáfora para o domínio da esponsalidade do Messias. De acordo com o referido nos Salmos 60,10 e 108,9, «pôr a sandália sobre» significa «tomar posse»; é, portanto, linguagem jurídica de posse. No Livro do Deuteronómio 25,5-9, o não-cumprimento da lei do levirato implica que seja «retirada» a sandália ao cunhado não cumpridor da lei, gesto que garante a sua perda de posse no domínio matrimonial. Aqui já se trata de direito matrimonial. Em Rute 4,7-10, temos um caso jurídico concreto em que o que tem o direito de resgatar o património e de desposar Rute prescinde desse direito. Para o dizer juridicamente, em reunião pública realizada à porta da cidade (Rute 4,1), o homem em causa «retira» a sandália e entrega-a a Booz, que fica assim com o direito de resgatar o património e de desposar Rute. A metáfora da sandália em Mateus 4,11 e nos demais dizeres do Novo Testamento que anotámos significa que é Jesus o noivo, a quem assiste o direito de desposar Israel, e que a João não assiste esse direito ou competência.

4. Se é evocada a continuidade dos ministérios de João e de Jesus, não deixa também de ser bem acentuado, por outro lado, o confronto entre os dois, pois têm esquemas messiânicos diferentes. 1) Vê-se bem que João Batista anuncia um Messias-Juiz, que traz na mão o machado e a pá de joeirar (3,10-12), ao passo que Jesus assume a figura de Servo-do-Senhor manso e humilde (12,17-21). 2) O apelo à conversão que João faz não é dirigido apenas aos pagãos e aos pecadores, mas também aos israelitas piedosos (3,7-10): portanto, face ao Messias-Juiz-que-Vem, também os justos se devem converter; não é a raça de Abraão que conta, mas a fé. 3) A conversão manifesta-se em fazer fruto, uma ideia recorrente em Mateus (cf. 7,16-20; 12,33; 13,8; 21,41 e 43; 25,40 e 45…). 4) A conversão, aqui expressa pelo verbo grego metanoéô, não deve ser vista apenas pelo seu significado etimológico: mudar de mentalidade. Seria uma maneira de ver muito intimista, mostraria o homem debruçado sobre si mesmo, sobre os seus pecados. Ora, a raiz hebraica shûb, sobretudo depois de Jeremias (Isaías 31,6; 45,22; 55,7; Jeremias 3,7.10.14.22; 4,1; 8,5; 18,11; 24,7; 25,5; 26,3; 35,15; 36,7; 44,5; Lamentações 3,40; Ezequiel 13,22; 14,6; 18,23 e 30; 33,9 e 11; Oseias 11,5; 12,6; 14,1-2; Joel 2,12-13; Zacarias 1,3-4; Malaquias 3,7), não implica o dobrar-se do homem sobre si mesmo, mas endireitar-se e orientar-se para ALGUÉM, para Deus, com quem o ser humano cortou relações, distanciando-se e quebrando a aliança. Esta ideia de conversão como caminho de regresso a Deus estava muito disseminada no judaísmo primitivo, mas era desconhecida no mundo grego. 5) À vista de Jesus-que-Vem no meio da multidão, como verdadeiro Servo-do-Senhor (3,13-14), que assume as faltas da multidão, João fica confuso. Na verdade, esperava um Juiz, e não um Servo solidário com o povo no pecado, como indica o facto de Jesus vir no meio do povo a este batismo de penitência. 6) Além disso, e contra todas as expetativas de João, Jesus não vem para batizar, mas para ser batizado (3,11.13-14). 7) O diálogo travado neste lugar entre João Batista e Jesus (3,14-15), que nenhum outro Evangelho descreve, e em que João mostra o seu desacordo com o facto de ter de ser ele a batizar Jesus e não o contrário, é ultrapassado por Jesus que profere aqui as suas primeiras palavras neste Evangelho: «é bom que seja cumprida toda a justiça» (v. 15). A justiça, termo muito em uso neste Evangelho em que se faz ouvir por sete vezes (Mateus 3,15; 5,6.10.20; 6,1.33; 21,32), traduz o plano divino de salvação, que é a divina surpresa, e requer a adequação da nossa vontade a esse plano, melhor dito, a essa surpresa. Sendo as primeiras palavras de Jesus, e por isso importantes e analépticas, rasgam uma avenida de sentido que Jesus seguirá até à Cruz: obediência ao Pai e solidariedade com o povo pecador. Rutura clara com a esperança messiânica de João e do mundo judaico desse tempo, mas sintonia com o significado verdadeiro das Escrituras. A conversão a que João e o judaísmo e cada um de nós somos convidados é um regresso à sintonia com a Palavra de Deus. Pelo que o verdadeiro judeu e o verdadeiro homem é aquele que se faz cristão. Torna-se então notório o sonho de um Deus que desce ao nosso mundo, não para nos condenar ou derrubar, mas para se tornar solidário connosco e caminhar no meio de nós.

5. Isaías 11,1-10, que serve hoje de ressonância ao Evangelho de hoje, mostra muito mais o tom manso e suave do Servo-do-Senhor que Jesus incarna do que o martelo do Juiz que João Batista prenuncia. Isaías abre diante de nós um mundo novo, tenro e terno, que, visto desde este nosso mundo escuro e tantas vezes desumano, soa a sonho. Ei-lo desenhado nestes versos imensos: «Então o lobo habitará com o cordeiro,/ o leopardo deitar-se-á com o cabrito,/ o bezerro e o leãozinho andarão juntos,/ e um menino pequeno os conduzirá.// A vaca e o urso pastarão juntos,/ juntas se deitarão as suas crias,/ o leão comerá feno com o boi,/ e a criança de peito brincará com a víbora» (Isaías 11,6-8).

6. Avista-se daqui o Menino de Belém. Uma paz a perder de vista, sem princípio e sem fim. Um mundo novo governado por um menino pequeno. Vê-se bem que este mundo belo e manso não se parece nada com o nosso, cheio de raivas e de ódios, invejas, mentiras, manhas, astúcias, violências e guerras. Nenhum menino poderia governar um mundo assim. E o problema que nos assalta não está no menino; está neste nosso mundo mentiroso, fraudulento e violento.

7. Contra este mundo empedernido e embrutecido embate a ternura do Menino de Belém. Entenda-se bem outra vez: não é o menino que está errado; somos nós que estamos completamente errados e equivocados. É por isso que somos convidados à conversão.

8. O mundo novo e saboroso que emerge dos textos de hoje é também sublinhado por S. Paulo nas exortações que nos dirige na Carta endereçada aos Romanos 15,4-9. Como seria belo um mundo pautado por uma verdadeira fraternidade em que todos vivêssemos sob o impulso e o alento carinhoso e criador de Deus. Na verdade, todos respiramos o mesmo alento, que o texto grego diz com o belo termo composto homothymadón (Romanos 15,6), que junta homós [= mesma] e thymós [= alma], sendo que thymós deriva de thýô [= soprar]. E que mundo maravilhoso surgiria, rompendo a crosta do egoísmo e da dureza de coração, se «nos acolhêssemos uns aos outros, como Cristo nos acolheu a nós» (Romanos 15,7). Aí está então a comunidade humana irmanada e reunida, porque todos recebemos de Deus o mesmo alento, o mesmo sopro criador (Génesis 2,7), e com uma só boca (en henì stómati) e a uma só voz cantamos os louvores do nosso Deus (Romanos 15,6). Esta linguagem e esta harmonia enchem por inteiro a comunidade primitiva (Atos 1,14; 2,46; 5,12).

9. Também os versos sublimes do Salmo Real 72 cantam a mesma melodia de alegria que se insinua nas pregas do coração da inteira humanidade maravilhada com a presença de Rei tão carinhoso. Também aqui encontramos a hiperbólica «idade do ouro», o grão que cresce mesmo no cimo das colinas, e a felicidade dos pobres, que serão sempre os melhores «clientes» de Deus. Extraordinária condensação da esperança da nossa humanidade à deriva, e a que só Deus pode responder.

 

António Couto



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