XXVI do Tempo Comum: «Esbanjadores dos bens de Deus»

Am 8,4-7; Sl 113; 1 Tm 2,1-8; Lc 16,1-13

1. O uso cristão da riqueza preenche quase por completo o Capítulo 16 do Evangelho de Lucas. Digo «quase», porque temos de excluir apenas uma breve palavra sobre a Lei (Lucas 16,16-17) e outra, brevíssima, sobre o divórcio (Lucas 16,18). Dividindo o Capítulo em duas grandes partes, ficamos então com duas belas parábolas de Jesus: a primeira (Lucas 16,1-13), conhecida como «O administrador desonesto», será proclamada neste Domingo XXV do Tempo Comum, e a segunda (Lucas 16,19-31), conhecida como parábola do «Rico avarento e do pobre Lázaro», será proclamada no Domingo seguinte, XXVI do Tempo Comum.

2. A parábola do Administrador desonesto, que escutaremos neste Domingo XXV, tem sempre desorientado quer os leitores e ouvintes que a leem ou ouvem com simplicidade e bom senso, quer os exegetas que pretendem captar os seus segredos e penetrar nos seus veios mais profundos. E o problema reside nisto: é possível que o Evangelho proponha como modelo a imitar um homem desonesto?

3. O leitor ou ouvinte simples e de boa fé diz naturalmente que não, e compreende que deve afinar pela honestidade a sua vida. Os exegetas enveredam habitualmente, para atenuar o desconforto sentido pela incompreensão do texto, por indagar os costumes então em uso na Palestina, e descobrem que as terras eram muitas vezes propriedade de grandes senhores, em muitos casos estrangeiros, que se ausentavam para os seus negócios, deixando no terreno administradores locais, a quem davam grande margem de manobra, desde que, no final do ano, entregassem ao senhor o montante que tinham acordado. Neste sentido, é facilmente compreensível que o administrador ou feitor, de acordo com os negócios feitos, podia também obter licitamente os seus lucros ou benefícios, e que tenha sido com a sua parte dos lucros que o administrador, em nada prejudicando o seu senhor, tenha levado a efeito aqueles descontos que vemos nesta parábola.

4. Explicação aparentemente fácil e sensata, mas que não pode ser levada em conta. É demasiado equilíbrio para tão pouca explicação! Em boa verdade, a parábola não chama a atenção para a desonestidade do administrador, nem para os meios a que recorreu para fazer amigos. Claramente, a sua desonestidade não interessa a Jesus: não a condena, e tão pouco recomenda que a imitemos. Em vez disso, Jesus chama a nossa atenção para a prontidão, inteligência, clarividência e largueza de vistas com que o administrador procede, sem permitir que o assalte, nem por um momento, a hesitação ou a fuga.

5. É verdade que o administrador da parábola e o discípulo de Jesus que a escuta pertencem a duas maneiras diferentes de estar na vida e de proceder: o primeiro obedece à lógica do mundo; o segundo à do Reino. Trata-se evidentemente de duas maneiras diferentes de encarar a vida. Não obstante, o discípulo de Jesus, de acordo com o andamento da parábola, deve aprender do administrador, não a ser desonesto, mas a capacidade de decidir com prontidão, inteligência e largueza de vistas. Todavia, se a parábola só ensinasse isto, tratava-se de coisas óbvias que a vida sensata nos vai ensinando todos os dias. Para aprender apenas isto, não é preciso ler ou ouvir nenhum Evangelho. O Evangelho tem de nos levar para além do habitual, tem de desequilibrar completamente as nossas habituais maneiras de fazer e proceder.

6. Prossigamos então este caminho. Na sua literalidade (nem precisamos de ser muito rebuscados), este pedaço do Evangelho deve revolver completamente os nossos procedimentos. E aquilo que salta à nossa vista, quer queiramos quer não, é a figura de um administrador que esbanja completamente os bens de que dispõe, e que não são dele. São do seu senhor. Inequívoco. O texto diz expressamente que o administrador «convocou os devedores do seu senhor, e disse ao primeiro: “Quanto deves ao meu senhor?”» (v. 5). Fica claro quem é o proprietário daqueles bens: é o senhor do administrador e dos devedores. À pergunta formulada pelo administrador: «Quanto deves ao meu senhor?», o devedor respondeu: «Cem talhas de azeite». Resposta do administrador, que traz, agora sim, não o usual, mas o Evangelho: «Senta-te depressa, e escreve cinquenta» (v. 6). Sem equívocos: este administrador é um esbanjador dos bens do seu senhor! Olhemos então de frente, e perguntemo-nos: «E Jesus não veio esbanjar os bens do Pai?». Não esbanjou e continua a esbanjar o amor, o perdão, a vida, a misericórdia, a alegria, a paz? Portanto, o administrador da parábola não faz mais do que Jesus fez e faz. Por estranho que pareça, distribuir sem medida, «esbanjar», é a palavra-chave da parábola. E então, o leitor e o ouvinte desta parábola do Evangelho já sabe até que ponto este bocadinho de Evangelho pode e deve mexer com a sua vida.

7. Mas, há ainda, no v. 6, outro belo apontador do Evangelho, que não podemos descurar. É aquele: «Senta-te depressa…». Mas que pressa é esta? É a pressa e o mapa da Páscoa do Egito, porta aberta para a viagem transitiva e intransitiva da liberdade: «Comereis a toda a pressa com os rins cingidos, as sandálias nos pés, o cajado na mão; é a Páscoa do Senhor» (Êxodo 12,11). É a pressa do mensageiro de Isaías 52,7, que corre sobre os montes porque tem para anunciar boas novas a Sião, exultação logo replicada pelas sentinelas de Sião, e que chega a revolver e a envolver mesmo as próprias ruínas de Jerusalém (Isaías 52,8-9). É a pressa do amado do Cântico dos Cânticos 2,8, que o amor faz correr sobre os montes. É a pressa de Maria que se levanta e se põe a caminho apressadamente (Lucas 1,39), Arca da Nova Aliança portadora do Evangelho em pessoa. É a pressa dos pastores dos campos de Belém, que correm a Belém (Lucas 2,15-16), para ver e saudar o Salvador acabado de nascer. É a pressa dos setenta e dois discípulos de Jesus (Lucas 10,4), enviados por Jesus, sem paragens no caminho, procedimento inconcebível no mundo do Médio Oriente Antigo (onde as pessoas se entretinham longamente a conversar), e que lembra a pressa imposta pelo profeta Eliseu ao seu servo Guiezi para ir, sem paragem no caminho, ao encontro do filho morto da Sunamita (2 Reis 4,29), a qual também tinha partido a toda a pressa para casa de Eliseu (2 Reis 4,22). É a pressa do Pai do filho pródigo, quando interrompe o discurso do filho, e diz para os criados: «Depressa, trazei o primeiro vestido, e vesti-lho» (Lucas 15,22). É a pressa do administrador esbanjador dos bens do seu senhor, que diz para um dos devedores: «Cem talhas de azeite? Senta-te depressa, e escreve cinquenta» (Lucas 16,6). É a pressa de Jesus, quando diz para Zaqueu: «Desce depressa, porque é preciso para mim ficar hoje em tua casa» (Lucas 19,5). É a pressa de Zaqueu a descer do sicómoro e a receber Jesus em sua casa, para virar a sua vida toda do avesso (Lucas 19,6). É a pressa das mulheres e dos homens da Páscoa, que até hoje não param de correr (João 20,2.4). É a pressa de Pedro pelo anjo atirado da prisão para a rua (Atos 12,7). É a pressa de Paulo em anunciar aos judeus de Damasco que Jesus é o Filho de Deus (Atos 9,20). Não nos resta senão acelerar a nossa vida para nos pormos ao ritmo do Evangelho.

8. A parábola contada por Jesus permite ainda uma correta compreensão sobre a função do dinheiro. O dinheiro é para servir o homem, mas torna-se muitas vezes o seu dono, diante do qual nós nos prostramos, segurança enganadora, falso sucedâneo de Deus, ídolo, a que o Evangelho chama MAMONA (mamônã) (Lucas 16,13; cf. Mateus 6,24). De notar que o termo grego mamônãs [= dinheiro, riqueza] deriva, através do aramaico mamôn, da raiz hebraica ’mn, que serve também para dizer a fé e a confiança em Deus. É como quem diz que podemos equivocar-nos radicalmente, deixando de pôr a nossa fé e confiança no Deus vivo, para nos agarrarmos aos ídolos mortos e vazios, uma espécie de «espantalhos num campo de pepinos!» (Jeremias 10,5). No nosso caso e nesta sociedade moderna, pode tratar-se de belos edifícios plantados no meio das cidades. É aí que estão os bancos! O historiador das religiões, David Flüsser, atravessava um dia a cidade de Atenas enquanto refletia sobre a fé, grego pístis, no Novo Testamento. E quando levantou os olhos, deparou-se com grandes letras no frontal de um edifício. Leu: trápeza tês písteôs, à letra, banco de fé, em termos modernos, banco de crédito! Veja-se, hoje, com olhar lúcido, o logro ou o lodaçal das nossas arquitetadas seguranças!

9. Daí a muito bíblica e oriental advertência de Jesus: «Ninguém pode servir a dois senhores», donde: «Não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (Lucas 16,13). De notar que o Livro de Ben Sira já advertia com sabedoria: «Muitos pecam por amor ao dinheiro. Aquele que procura enriquecer faz todas as falcatruas». E ainda: «Como se introduz um pau entre as junturas das pedras, assim se intromete o pecado entre a venda e a compra» (Ben Sira 27,1-3).

10. O livro de Amós, de que hoje ouvimos também uma pequena perícope (8,4-7), caustica severamente a exploração dos pobres, a corrupção e o lucro fácil. O mundo de Amós é de oito séculos antes de Cristo. Mas o seu Livro parece ter sido escrito hoje, dada a sua tremenda atualidade. A lição de hoje abre com a chamada «fórmula de atenção» [= «Ouvi»], que introduz habitualmente oráculos de desgraça, e dirige-se aos ricos e latifundiários, que vendem o trigo aos necessitados, enganando-os e roubando-os sorrateiramente, usando balanças, medidas e pesos falseados, comprando o trabalho dos pobres por um par de sandálias! Como se vê, sendo embora o texto do séc. VIII a.C., parece que estamos a ler um compêndio moderno de economia e comércio, que tem em vista apenas o lucro fácil a custo seja do que for. O oráculo termina referindo que para um tal comportamento de roubo, para cúmulo disfarçado de seriedade, não há amnistia: «nunca o esquecerei», diz Deus (v. 7). O efá, de que se fala no texto (v. 5), usado para medir cereais, equivalia a 45 litros. O sheqel ou siclo, de que também se fala no v. 5, pesava 11,4 gramas. A moeda propriamente dita aparece no séc. VIII na Anatólia, e pouco depois na Grécia. O sheqel é o nome atualmente usado para designar a moeda israelita.

11. Chega-nos hoje mais uma extraordinária lição de São Paulo na sua 1 Carta a Timóteo 2,1-8. Primeiro que tudo (prôton pántôn), rezar por todos os homens, usando todas as modalidades da oração: súplicas (deêseis), orações intensas (proseuchaí), pedidos (enteúxeis), ações de graças (eucharistíai) (v. 1). Depois, a afirmação da vontade salvadora universal de Deus, nosso Salvador, que quer que todos os homens sejam salvos, e ao conhecimento da verdade venham (v. 4). Dois movimentos: um da parte de Deus, nunca anulável; outro da nossa parte, indicando que nos devemos pôr em movimento em ordem ao conhecimento profundo, pessoal, íntimo, experimental (epígnôsis) da verdade, que é o amor fiel e fiável de Deus por nós. Em continuidade, o único mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, que se entregou a si mesmo por nós (v. 5-6). A seguir, a razão de ser do próprio Paulo e da sua missão de anunciador (kêryx) e apóstolo (apóstolos) (v.7). Por último, como ao princípio, a vontade de Paulo de que todos rezem em toda a parte (v. 8).

12. E ficamos com a música inebriante do Salmo 113, o Salmo que abre o fascículo dos Salmos 113-118, catalogados como o «pequeno Hallel da Páscoa» ou «Hallel egípcio», Salmos cantados no decurso da Ceia da Páscoa hebraica, de que o Talmude registra uma imagem sugestiva, deixando supor que, no decurso da Ceia da Páscoa, se levantava das casas dos hebreus um suspiro de louvor que perfurava os tetos e chegava ao céu: «A Páscoa é saborosa como a azeitona, e o Hallel deve atravessar os tetos das casas para chegar ao trono de Deus». O Salmo 113, sessenta palavras hebraicas, apresenta três belos andamentos: o primeiro, v. 1-3, convida os orantes a encher de louvor o espaço todo visto na sua linha horizontal (do nascer ao pôr do sol: oriente-ocidente) e o tempo todo (agora e sempre). Este louvor intenso dirige-se à pessoa do Senhor, expressa pelo Nome do Senhor (três vezes). O segundo andamento, v. 4-6, desenha uma linha vertical no sentido descendente (céu-terra), e mostra a transcendência, a glória e a incomparabilidade de Deus, sentado no alto, nos céus, mas amorosamente debruçado sobre a terra. Portanto, o nosso Deus não é um Deus impassível e abstrato, fechado nas paredes douradas da sua eternidade, mas é um Deus que se interessa por nós. O terceiro andamento, v. 7-9, desenha agora uma linha vertical no sentido ascendente (terra-céu), e mostra Deus em ação no nosso mundo, levantando do pó e do esterco os indigentes, e fazendo da estéril, por todos desprezada, mãe honrada e feliz, habitante digna na casa do Senhor. Grande Hino de Louvor, que faz comunhão na vertical e na horizontal, e que nos junta a todos na bênção (v. 2), hebraico berakah, grego eulogía, que desenha um mundo de bondade e de bem, de pensar bem, dizer bem, querer bem, fazer bem. Bendizer ou dizer bem une, como sabemos. Une-nos uns com os outros e todos com Deus. É a Eucaristia. Ao contrário, maldizer ou dizer mal separa, como também sabemos.

13. Mas nunca nos esqueçamos que não pode ser o dinheiro a comandar a nossa vida. Nunca nos devemos esquecer da história daquele fulano que era tão pobre, tão pobre, tão pobre…, que só tinha dinheiro!

 

António Couto



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