Domingo I da Quaresma: «Profissão de fé e Paz»

1. Só secundariamente a Quaresma «prepara» para a Ressur­reição. Na verdade, todos os «Tempos» e todos os Domingos do Ano Litúrgico – portanto, também a Quaresma e os seus Domingos – estão depois da Ressurreição e por causa da Ressurreição. E é só sob a intensa luz do Senhor Ressusci­tado com o Espírito Santo (Batismo consumado: Lucas 12,49?50) que a Igreja – e cada um de nós – pode celebrar autenti­camente a sua fé, proceder à correta «leitura» das Escri­turas e encetar a «caminhada» quaresmal. Neste sentido, todos os batizados são chamados a refazer com Cristo bati­zado o seu programa batismal, cujo conteúdo e itinerário conhecemos: desde o Batismo no Jordão, passando pela Trans­figuração/Confirmação no Tabor, até à Cruz eà Glória da Ressurreição (Batismo consumado!), escutando e anunciando sempre e cada vez mais intensamente o Evangelho do Reino e fazendo sempre e cada vez mais intensamente as «obras» do Reino (Atos 10,37-38: texto emblemático). Os catecúmenos, acompanhados sempre pela Assembleia dos batizados, «pre­param?se» intensamente para a Noite Pascal Batismal, início e meta da vida cristã.

2. Batizado com o Espírito Santo, e declarado por Deus «o Filho meu», «o Amado» (Lucas 3,21-22), Jesus é conduzido pelo Espírito Santo através do deserto (Lucas 4,1), lugar teológico e não meramente geográfico – com muita água (João 3,23) cumprindo Isaías 35,6-7, 41,18 e 43,19-20, com árvores (canas) (Lucas 7,24) e relva verde (Marcos 6,39) cumprindo Isaías 35,1 e 7 e 41,19 –, lugar provisório e preliminar, preambular, longe do que é nosso, onde se está «a céu aberto» com Deus, onde troará a voz do seu mensageiro (Isaías 40,3), de João Batista (Lucas 3,2-6), do próprio Messias segundo uma tradição judaica recolhida em Mateus 24,26. O deserto é o lugar onde se pode começar a ver a «obra» nova de Deus (Isaías 43,19). Sendo um lugar provisório, aponta para a Terra Prometida e definitiva do repouso que só Deus pode dar. O deserto é lugar de passagem. Sem pontos de referência nem marcos de sinalização. Se o rumo não estiver bem definido, o viandante corre o risco de se perder no deserto da vida e de nunca chegar à Vida verdadeira.

3. A liturgia deste Domingo I da Quaresma, neste Ano C, oferece-nos três textos sublimes atravessados em filigrana pela profissão de fé. Comecemos pelo Evangelho com o texto majestoso das chamadas tentações de Jesus (Lucas 4,1-13). Durante quarenta dias (40 é o tempo de uma vida, a vida toda) Jesus jejuou (Lucas 4,2), isto é, perscrutou a «obra» nova de Deus na história do seu povo, que o mesmo é dizer, saboreou as Escrituras, o outro alimento (Deuteronómio 8,3; Mateus 4,4; cf. João 4,32 e 34-35: notável releitura em que aos olhos atónitos dos discípulos saltam as estações do ano!), e meditou, sempre a partir das Escrituras, na sua missão filial batismal. E é na sua condição de batizado, isto é, de Filho de Deus, que ele é tentado. De facto, toda a tentação – a de Cristo como a nossa – começa sempre da mesma maneira: «se és o Filho de Deus…». Atente-se em como se repete nos mesmos termos sob a Cruz (Lucas 23,35-39). Portanto, sempre. Do Batismo até à Morte, a tentação visa afastar-nos de Deus e da sua «obra», e pôr-nos ao serviço do «deus deste mundo» (2 Coríntios 4,4; cf. João 12,31).

 

4. Mas detenhamo-nos brevemente nas ofertas do tentador de hoje. Em primeiro lugar, fabricar o próprio pão, a que podemos chamar por isso, com verdade, o pão que o diabo amassou, em vez de receber o pão da Palavra dado por Deus (Deuteronómio 8,3) aos seus amigos até durante o sono (Salmo 127,2) (Lucas 4,3-4). Em segundo lugar, a oferta de todos os reinos deste mundo e da sua glória em troca do afastamento de Deus (Lucas 4,5-7). E a resposta decidida de Jesus, remetendo para a Escritura Santa e para Deus: «Está escrito: “Adorarás ao Senhor, teu Deus, e só a Ele prestarás culto”» (Lucas 4,8). Em terceiro lugar, a tentação do sucesso fácil em Jerusalém, taxativamente recusada por Jesus (Lucas 4,9-13). Para quem tem diante dos olhos o texto de Mateus 4,1-11, aperceber-se-á de imediato da troca de lugar da segunda e da terceira tentação. Fácil de compreender: em Lucas, Jerusalém é o centro do mundo, é lá que Jesus aparece logo aos 40 dias (Lucas 2,22), aos 12 anos (Lucas 2,41), é para lá que Jesus caminha na secção central deste Evangelho (Lucas 9,51-19,28), é lá que se sucedem os últimos episódios da sua vida, é lá que os discípulos são mandados esperar (Lucas 24,49-53), em vez de se dirigirem para a Galileia. Convém, portanto, que a terceira tentação decorra em Jerusalém. De resto, neste Evangelho, para realçar Jerusalém, quase todos os outros lugares são nivelados pelo dizer comum: «estando Ele em uma cidade…» (Lucas 5,12), «num certo lugar…» (Lucas 11,1; 17,12).

5. Batizado, tentado na sua condição de Batizado, e Vitorioso na tentação, Jesus passa de imediato à execução do seu programa filial batismal: anunciar o Evangelho de Deus e fazer a sua «obra» (Lucas 4,14s.). Como ele também nós.

6. Extraordinária a lição do Livro do Deuteronómio 26,4-10: aqui estou, meu Deus, orientando a minha vida toda para Ti, oferecendo-Te os primeiros frutos desta Terra boa e bela que nos destes, depois de nos teres chamado do meio da confusão e dado a liberdade! Eu canto para Ti, meu Deus, pois é a Ti que devo a minha liberdade e a bondade e beleza da minha vida! Este belo texto é uma miniatura, um colar (harizah) de pérolas do Teu amor por nós, que devemos levar sempre connosco, como se fosse uma fotografia Tua! O chamamento dos pais, a libertação do Egito, a dádiva da Terra Prometida.

7. E a lição da Carta aos Romanos 10,8-13: na minha vida toda, no meu coração e na minha boca – no coração a fé, na boca o testemunho – escorre o sabor da Tua Palavra, doce como o puro mel dos favos!

8. O Salmo 91 é um poderoso grito de confiança em Deus, que vela por nós em todos os momentos da nossa vida, sobretudo nos mais difíceis. A piedade popular tem este Salmo em muito apreço. Basta ver, no Doutor Jivago, de Boris Pasternak, o soldado encontrado morto numa batalha, que levava ao pescoço, cozidos num velho pedaço de pano, alguns versículos deste Salmo. Os v. 11-12: «Ele mandou aos seus anjos que te guardem em todos os teus caminhos;/ eles sustentar-te-ão em suas mãos para que os teus pés não tropecem em alguma pedra», são citados pelo diabo no Evangelho de hoje (Lucas 4,10-11), com colorido mágico. O Salmo e Jesus propõem, claro, uma atitude de confiança, não mágica, mas verdadeira, em Deus. E nós cantamo-los hoje, com o coração dorido, por todos os nossos irmãos caídos sob as bombas na Ucrânia.

 

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Ao entrarmos no tempo santo da Quaresma,

Devemos ter a coragem de atravessar a poeira dos caminhos

Intransitivos do nosso coração,

Isto é, de limpar as mentiras, ódios, raivas, violências, banalidades,

Que tantas vezes preenchem os nossos dias.

A Quaresma é tempo de nos expormos

Ao vendaval criador e purificador do Espírito,

Sem termos a pretensão de o querer transformar em ar condicionado.

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Toma em tuas mãos, Senhor,

A nossa terra ardida.

Beija-a.

Sopra nela outra vez o teu alento,

A tua aragem,

E veremos nela outra vez impressa a tua imagem.

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Tu sabes bem, Senhor, que somos frágeis.

Mas contigo por perto,

Seremos fortes e ágeis,

Capazes de abrir estradas no deserto,

A céu aberto.

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Concede-nos, Senhor, a paz e o pão,

E que no meio de tanto gelo e neve,

Sintamos na nossa pele

A pele de cada irmão nosso de Kiev.

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António Couto



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