Domingo X do Tempo Comum: «A Verdadeira Família de Jesus»

Gn 3,9-15; Sl 130; 2 Cor 4,13-5,1; Mc 3,20-35

1. É-nos dado neste Domingo X do Tempo Comum escutar o Evangelho de Marcos 3,20-35. É um texto considerado difícil, em que são facilmente identificáveis quatro cenas organizadas em crescendo. Primeira cena: Marcos 3,20-21: Jesus entra numa «casa», em Cafarnaum, provavelmente na «casa» de Simão e de André (cf. Marcos 1,29.32-33; 2,1-2), em que já tinha entrado por mais de uma vez. Desta vez, Marcos refere que Jesus é procurado por todos, e nem sequer tem tempo para comer. Nestas condições, os «seus» (familiares), de Nazaré, saem para tomar conta dele, pois se dizia: «está fora de si» (exéstê). Segunda cena: Marcos 3,22: descem os escribas de Jerusalém, que são os especialistas do relacionamento com Deus, para verem também o que se passava com Jesus. Ao verem as maravilhas que realizava, concluem que «está possuído por Belzebu» (Mc 3,22) ou «por um espírito impuro» (Marcos 3,30), e que «é pelo príncipe dos demónios que Ele expulsa os demónios» (Marcos 3,22). Terceira cena: Marcos 3,23-30: Jesus, ouvindo o parecer dos referidos escribas, desmonta-o completamente e redu-lo a pó, mostrando a contradição em que entram. Quarta cena: Marcos 3,31-35: só agora se dá conta da chegada da sua mãe e dos seus irmãos, os quais, ficando lá fora, o mandam chamar. Refere o narrador que à volta de Jesus estava sentada uma grande multidão, e dizem a Jesus que a sua mãe, os seus irmãos e as suas irmãs estão lá fora, e reclamam a sua presença. Jesus responde com uma inesperada pergunta: «Quem é a minha mãe e quem são os meus irmãos?». E olhando em redor para aqueles que estavam sentados à sua volta, disse: «Eis a minha mãe e os meus irmãos». E remata com assombro, dizendo: «Aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu irmão e irmã e mãe».

2. A primeira cena requer alguma atenção. A «casa» de que se fala é claramente a casa de Simão e de André, em Cafarnaum (Marcos 1,29). É aí que as multidões procuram Jesus (Marcos 3,20), como já tinha sido anotado antes em Marcos 1,33 e 2,2. Mas agora tomam-lhe o tempo todo, a ponto de Jesus não ter tempo nem sequer para comer. É nesta situação-limite que chegam os seus familiares para o levarem de regresso para Nazaré. Todavia, ao contrário do que algumas versões deixam entender, não eram os familiares de Jesus, vindos de Nazaré, que «diziam: está fora de si» (Marcos 3,21), ou, por outras palavras, «enlouqueceu». Todo o problema reside em identificar o sujeito daquele «diziam». A forma verbal grega é élegon, que é um imperfeito impessoal, 3.ª pessoa do plural, do verbo légô. Deve, pois, traduzir-se, não que os familiares de Jesus diziam, mas que «se dizia», isto é, as pessoas diziam. Muda tudo na compreensão do texto. Os mais céticos podem sempre ver, acerca deste acerto exegético, M. Zerwich, M. Grosvenor, A Grammatical Analisis of the Greek New Testament, Roma, Biblical Institute Press, ed. rev., 1981, p. 109. De resto, este «diz-se, diz-se» do povo também se ouve em João 10,20, onde é referido que «muitos diziam dele que tem um demónio e está a delirar». E porque era isto que corria acerca de Jesus, os seus familiares são os primeiros que devem intervir, como refere a Escritura Santa (Deuteronómio 13,2-12; Zacarias 13,2-5).

3. Na segunda cena, os escribas de Jerusalém, representantes do saber oficial de Jerusalém e especialistas no relacionamento com Deus, dão um passo em frente e afirmam logo que Jesus faz o que faz, porque está em colaboração com as forças do mal, e sentenciam sem mais que «está possuído por Belzebu, e que é pelo chefe dos demónios que ele expulsa os demónios» (Marcos 3,22).

4. A terceira cena está toda preenchida pela tomada de posição de Jesus contra a sentença dos escribas (Marcos 3,23-30), e constitui o mais longo discurso de Jesus feito até agora no Evangelho de Marcos. O raciocínio viciado dos escribas é completamente desmontado por Jesus, que faz ver aos escribas aquilo que é óbvio: se alguém luta contra si mesmo entra em dissolução, e autodestrói-se. Não pode, portanto, ser o mal a lutar para vencer o mal. O mal só pode ser vencido pelo bem (cf. Romanos 12,21). Só a cegueira de corações empedernidos pode recusar evidência tão evidente. De facto, quem estiver postado do lado do mal, não se porá a combater o mal, pois uma tal atitude equivaleria a cortar o ramo em que se está sentado, destruindo-se a si mesmo. É o mesmo que pode suceder a um reino, uma família, uma comunidade dividida, em que todos se digladiam uns aos outros, acabando necessariamente por se autodestruir. Fácil de compreender: se, como sentenciam os escribas, Jesus expulsa os demónios por aliança com o chefe dos demónios, o reino dos demónios tem os dias contados. Não se pode confundir a fonte do bem, operado por Jesus, com a fonte do mal, que é obra satânica. Confundir a fonte do bem, operado por Jesus, com a fonte do mal, obra satânica, é não querer reconhecer a ação de Deus, e reconhecer o mal como único poder, único deus! E o mal não perdoa, como todos vamos vendo e reconhecendo. Conta-se que Hillel, um dos grandes Mestres do judaísmo do tempo de Jesus, ao ver um cadáver a ser arrastado por uma corrente, terá sentenciado: «Foste morto porque mataste, mas quem te matou também será morto!». Portanto, o mal não perdoa, e funciona em cadeia. Prender Jesus, operador só do Bem, a este cadeado do mal, é contradizer a verdade reconhecida como tal. É confundir o Bem com o mal. É neste ponto preciso que não tem perdão o pecado contra o Espírito Santo. A blasfémia consiste no facto de que Jesus, sobre quem repousa o Espírito Santo de Deus (Marcos 1,8.10), seja designado como endemoninhado (Marcos 3,22.30), e que o que acontece por obra do Espírito Santo seja visto como obra satânica.

5. A quarta cena é uma bela cúpula do texto. Põe em contraponto a «casa» nova e a «casa» velha. A casa velha permanece vinculada ao velho livro anagráfico, que nos prende à terra, e não nos deixa ver o céu. Que nos enreda em laços familiares antigos ligados à casa antiga, e não nos deixa ver tantos novos irmãos e irmãs, pais e mães, filhos e filhas, que Deus nos dá. A família antiga, assente na terra e no sangue, não faz a vontade de Deus, não se senta à volta de Jesus. Fica cá fora e de pé. Nem entra nem quer ouvir a Palavra de Jesus. Pretende simplesmente trazê-lo de volta para a casa antiga. A família nova, assente no céu e na graça, fica lá dentro, sentada tranquilamente a escutar a Palavra de Jesus, para aprender a fazer a vontade de Deus. Tal como os escribas, mas não como o povo, também os familiares de Jesus vêm ter com Jesus (Marcos 3,32), e, outra vez como os escribas, também os seus pontos de vista não estão de acordo com os de Jesus (Marcos 1,37).

 

6. Por isso, Jesus abre aqui um Capítulo novo e surpreendente. Pergunta Ele, para espanto de todos certamente: «Quem é a minha mãe e os meus irmãos?» (Marcos 3,33). E olhando ao redor para todos os estavam sentados em círculo à sua volta, responde de forma contundente: «Eis a minha mãe e os meus irmãos» (Marcos 3,34). E conclui, com a autoridade de quem não ensina como os escribas (cf. Marcos 1,22): «Aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu irmão e irmã e mãe» (Marcos 3,35). É a família de Deus que Jesus tem em mente.

7. «Onde estás?» é a pergunta que Deus faz todos os dias a cada um de nós, e que abre hoje a narrativa exemplar de Génesis 3,9-15. Vale a pena inserir aqui uma história guardada por Martin Buber nos seus escritos. Conta Buber que o Rabino Shneur Zalman foi levado pelos seus adversários para a prisão de S. Petersburgo. Um dia, enquanto aguardava o julgamento, o comandante da guarda entrou na cela do Rabino. Vendo o seu ar pensativo e sério, o comandante pôs-se a falar com ele, e aproveitou para lhe colocar algumas das perguntas que se tinham levantado no seu espírito ao ler a Escritura. Por fim, perguntou: «Como se deve interpretar que o Deus Omnisciente pergunte a Adam: “Onde estás”» (Génesis 3,9). «Acredita o senhor», respondeu o Rabino, «que a Escritura é eterna e que diz respeito a todos os tempos, a todas as gerações e a todos os homens?». «Sim, acredito», respondeu o guarda. «Então», retomou o Rabino, «em cada tempo Deus interpela cada homem: “Onde estás no teu mundo? Dos dias e anos que te foram atribuídos, já passaram muitos. Entretanto, até onde já chegaste no teu mundo?”. Deus disse, por exemplo: “Repara, já há quarenta e seis anos que estás nesta vida. Onde te encontras?”». Ao ouvir o número exato dos seus anos, o comandante teve dificuldade em controlar-se, pôs a mão no ombro do Rabino, e exclamou: «Muito bem, muito bem!». Mas o coração estremecia-lhe.

8. Depois da história incisiva que acabámos de transcrever, voltemos à narrativa exemplar de Génesis 3,9-15. «Onde estás?», pergunta o Deus-Que-Vem por amor ao encontro da sua criatura dileta. «Tive medo e escondi-me», respondemos nós, amedrontados. A narrativa que hoje lemos, e que também nos lê, desvenda todas as nossas inúteis estratégias de defesa, e faz-nos ver como nós nos escondemos de nós mesmos e de Deus, e como alijamos facilmente as nossas culpas sobre os outros. Correto, limpo, terapêutico, salvador, era assumirmos e confessarmos humildemente as nossas culpas. Mas não. Fugimos, escondemo-nos de nós, e respondemos: «Foi a mulher», «foi aquele», «foi aquela», e, em última análise, «foste Tu, foste Tu, Deus», porque foste Tu que me deste a maravilha de um irmão, de uma irmã, e foi esse irmão dado por Ti, essa irmã dada por Ti, que me deu a comer aquele fruto, fruto de um furto! És Tu, portanto e em última análise, o culpado. Aí estamos nós a fugir de nós mesmos, e a acusar os outros! E se não assumimos as nossas culpas, como podemos corrigir os nossos erros, e como podemos chegar a descobrir a realidade humana e divina do perdão? Sim, porque quando nos escondemos de Deus, estamos também a esconder Deus e os seus dons, a Alegria, o Amor, o Perdão. É assim que chegamos a Cristo, que veio (e tinha que vir) por amor à nossa procura. À procura da ovelha perdida e escondida.

 

9. É assim, continua S. Paulo na lição contínua da Segunda Carta aos Coríntios (4,13-5,1), a afirmar que não seremos abandonados nesta tenda em ruínas, que é a nossa vida mortal. Deus vela por nós, e salva a nossa vida da ruína. É esta a experiência do orante do Salmo 116, a cuja fé e ação da fé Paulo se refere: «Também nós acreditamos, e por isso falamos (laléô) (2 Coríntios 4,13). Falar o Evangelho nunca sai de cor, mas da experiência da ação de Deus em nós. Por isso também não devemos fixar-nos na lama. Os olhos do nosso coração já devem estar postos na tenda nova e maior, no céu, onde Deus acolhe os seus filhos.

10. Neste sentido, o Salmo 130 surge hoje como um grito desde o abismo profundo em que muitas vezes jazemos atolados. São apenas 52 palavras hebraicas que atiramos a Deus, Senhor do Amor fiel (hesed) da Redenção (pedût). Cada orante que grita este Salmo sabe em que grau ou degrau de profundidade está. Sim, este é um dos 15 Salmos graduais ou das subidas ou das peregrinações (120-134). É uma voz que se levanta e sobe até àquele Senhor que não desprezou as nossas profundezas, mas até elas desceu, e até elas desce, para nos ajudar a subir!

 

António Couto



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