«Guerras não são justas, só a paz é justa», diz o Papa às Nações Unidas

Francisco enviou hoje uma mensagem do Conselho de Segurança das Nações Unidas, lida pelo arcebispo D. Paul R. Gallagher onde reforça a ideia de “uma terceira guerra aos pedaços”, critica um individualismo “pragmático e egoísta” e lembra que muitas vezes é mais precisa a “coragem para buscar a paz do que para fazer a guerra”

Leia, na íntegra, o discurso do Santo Padre

[Discurso do Santo Padre ao Conselho de Segurança das Nações Unidas lida por D. Paul R. Gallagher]

Senhora Presidente do Conselho de Segurança,

Senhor Secretário-Geral,

Caro Grande Imã de Al-Azhar,

Senhoras e senhores:

Agradeço-vos o amável convite para me dirigir a vós, que aceitei de bom grado porque vivemos um momento crucial para a humanidade, em que a paz parece sucumbir à guerra. Os conflitos estão a aumentar enquanto a estabilidade está cada vez mais ameaçada. Estamos a viver uma terceira guerra mundial aos pedaços, e quanto mais o tempo passa, mais ela parece espalhar-se. O Conselho, cuja missão é garantir a segurança e a paz no mundo, aparece por vezes como impotente e paralisado diante dos olhos dos povos. Mas o vosso trabalho, que a Santa Sé aprecia, é essencial para promover a paz e, precisamente por isso, gostaria de vos exortar veementemente a enfrentar os problemas comuns, deixando de lado ideologias e particularismos, visões e interesses partidários, e cultivando um único propósito: trabalhar pelo bem de toda a humanidade. Com efeito, esperamos que este Conselho respeite e aplique "a Carta das Nações Unidas com transparência e sinceridade, sem segundas intenções, como uma referência obrigatória de justiça e não como um instrumento para disfarçar intenções espúrias[1]".

Num mundo globalizado como o de hoje, estamos todos mais próximos, mas não é por isso que somos mais irmãos. Além disso, sofremos uma falta de fraternidade que se torna visível nas abundantes situações de injustiça, pobreza e desigualdade, e pela falta de uma cultura de solidariedade. «As novas ideologias, caracterizadas por generalizado individualismo, egocentrismo e consumismo materialista, debilitam os laços sociais, alimentando aquela mentalidade do «descartável» que induz ao desprezo e abandono dos mais fracos, daqueles que são considerados «inúteis». Assim, a convivência humana assemelha-se sempre mais a um mero do ut des pragmático e egoísta.[2]» [2]. Mas o pior efeito desta falta de fraternidade são os conflitos armados e as guerras, que antagonizam não apenas indivíduos, mas também povos inteiros, cujas consequências negativas repercutem por gerações. Com o nascimento das Nações Unidas, parecia que a humanidade aprendera a caminhar, depois de duas terríveis guerras mundiais, para uma paz mais estável; para finalmente se tornar uma família de nações. Mas, pelo contrário, parece que a história voltou a retroceder, com o surgimento de nacionalismos fechados, exasperados, ressentidos e agressivos, que geraram conflitos não apenas anacrónicos e ultrapassados, mas ainda mais violentos[3].

Como homem de fé, acredito que a paz é o sonho de Deus para a humanidade. No entanto, observo com tristeza que, por causa da guerra, esse sonho maravilhoso está a transformar-se em pesadelo. É verdade que, do ponto de vista económico, a guerra atrai mais do que a paz, na medida em que favorece o lucro, mas para poucos e em detrimento do bem-estar de populações inteiras. O dinheiro ganho com a venda de armas é dinheiro manchado com sangue inocente. É preciso mais coragem para abrir mão de um lucro fácil e preservar a paz do que para vender armas cada vez mais sofisticadas e poderosas. É preciso mais coragem para buscar a paz do que para fazer a guerra. É preciso mais coragem para promover o encontro do que para provocar o confronto; sentar-se à mesa de negociações do que continuar as hostilidades.

Para construir a paz é preciso sair da lógica da legitimidade da guerra; se isto poderia ter valor no passado, quando os conflitos armados tinham uma capacidade mais limitada, hoje, com armas nucleares e armas de destruição em massa, o campo de batalha tornou-se praticamente ilimitado e os efeitos potencialmente catastróficos. Chegou a hora de dizer seriamente “não” à guerra, de afirmar que as guerras não são justas, só a paz é justa; uma paz estável e duradoura, construída não sobre o equilíbrio instável da dissuasão, mas sobre a fraternidade que nos une. De facto, caminhamos sobre a mesma terra, todos como irmãos e irmãs, moradores da única casa comum, e não podemos escurecer o céu sob o qual vivemos com as nuvens do nacionalismo. Onde iremos parar se cada um pensar apenas em si mesmo? Por isso, quem trabalha na construção da paz deve promover a fraternidade. É um ofício que exige paixão e paciência, experiência e abertura, tenacidade e dedicação, diálogo e diplomacia. E escutar; ouvir o grito de quem sofre por causa dos conflitos, especialmente das crianças. Os seus olhos cheios de lágrimas julgam-nos; o futuro que lhes preparamos será então o tribunal das nossas eleições atuais.

A paz é possível, se for verdadeiramente procurada! Esta deveria encontrar no Conselho de Segurança «as suas características fundamentais, que uma conceção errónea da paz facilmente faz esquecer: a paz deve ser racional, não passional; magnânima, não egoísta; a paz não deve ser inerte e passiva, mas dinâmica, ativa e progressiva, pois as justas exigências dos direitos declarados e iguais do homem exigem dela novas e melhores expressões; A paz não deve ser fraca, inútil e servil, mas forte, tanto pelas razões morais que a justificam como pelo consentimento compacto das nações que a devem apoiar[4]».

Ainda estamos a tempo de escrever um capítulo de paz na história. Podemos consegui-lo tornando a guerra uma coisa do passado, não do futuro. Os debates neste Conselho de Segurança são ordenados e servem esse propósito. Gostaria de insistir mais uma vez numa palavra que gosto de repetir porque a considero decisiva: fraternidade. Isto não pode permanecer uma ideia abstrata, mas tornar-se um ponto de partida concreto; é, de facto, “uma dimensão essencial do homem, que é um ser relacional. A consciência viva deste caráter relacional leva-nos a ver e tratar cada pessoa como uma verdadeira irmã e um verdadeiro irmão; sem ela é impossível construir uma sociedade justa, uma paz estável e duradoura[5]».

Pela paz, por cada iniciativa e processo de paz, garanto-vos o meu apoio, a minha oração e a de todos os fiéis católicos. Espero que não só este Conselho de Segurança, mas toda a Organização das Nações Unidas, todos os seus Estados Membros e cada um dos seus funcionários, possam prestar um serviço eficaz à humanidade, assumindo a responsabilidade de zelar não só pelo seu próprio futuro, mas de todos, com a ousadia de renovar agora, sem medo, tudo o que for necessário para promover a fraternidade e a paz em todo o planeta. «Felizes os que trabalham pela paz» (Mt 5,9).


[2] Mensagem para o Dia Mundial da Paz (1 de janeiro de 2024)

[3] Cf. Carta enc. Fratelli tutti, 11.

[4] São Paulo VI. Mensagem para a VI Jornada Mundial da Paz (1 janeiro 1973).

[5] Mensagem para o Dia Mundial da Paz (1 de janeiro de 2024)

Imagem: Foto de Bernd ???? Dittrich na Unsplash

Tradução Educris a partir do original em italiano| 15.06.2023



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