Papa Francisco: «A Teologia é serviço à fé viva da Igreja»

Papa encontrou-se com os formandos do seminário arquidiocesano de Milão, no 150º aniversário da revista teológica «La Scuola Catolica» [A escola Católica], e desafiou à reflexão sobre o sentido da teologia, criticando os que promovem sermões, “compostos de moralismos”, e incapazes de “falar de Deus e responder às questões de sentido”

 

Leia, na íntegra, o discurso do Santo Padre

Queridos irmãos e irmãs, bom dia e bem-vindos!

Dou-vos as boas-vindas por ocasião do 150º aniversário da revista ‘La Scuola Cattolica’, expressão do Seminário Arquidiocesano de Milão. Saúdo a todos, superiores e formadores e, por meio vós, também os alunos e funcionários do seminário, assim como os editores e colaboradores da revista. Agradeço ao reitor as palavras que me dirigiu.

Este aniversário convida a deixarmo-nos interrogar sobre a tarefa a que é chamada hoje uma escola de teologia e, em particular, sobre o papel de uma revista como a vossa. Gosto de imaginar que esta revista é um pouco como uma vitrine, onde um artesão expõe os seus trabalhos e onde a sua criatividade pode ser admirada. O que amadureceu nos laboratórios das salas de aula académicas, no paciente exercício de pesquisa e reflexão, comparação e diálogo, merece ser compartilhado e tornado acessível a outros. À luz desta premissa, gostaria de dizer três coisas que acredito serem importantes.

1. A teologia é serviço à fé viva da Igreja. Muitos pensam que a única utilidade das ciências teológicas diz respeito à formação de futuros sacerdotes, religiosos e religiosas e, se houver, de agentes pastorais e professores de religião. Talvez na comunidade eclesial não se espere muito da teologia e das ciências eclesiásticas; às vezes parece que mesmo os líderes, ministros e agentes pastorais não consideram necessário aquele exercício vivo da inteligência crente, que é antes de mais um serviço precioso à fé viva da Igreja.

A comunidade, de facto, precisa do trabalho de quem tenta interpretar a fé, traduzi-la e retraduzi-la, torná-la compreensível, expô-la em novas palavras: um trabalho que deve ser feito sempre de novo, a cada geração. A Igreja encoraja e apoia este compromisso, o esforço de redefinir o conteúdo da fé em cada época, no dinamismo da tradição. E é por isso que a linguagem teológica deve estar sempre viva, dinâmica, não pode deixar de evoluir e deve preocupar-se em se fazer entender. Às vezes, os sermões ou catequeses que ouvimos são em grande parte compostos de moralismos, não suficientemente "teologais", isto é, não são capazes de nos falar de Deus e de responder às questões de sentido que acompanham a vida das pessoas, e que muitas vezes não encontra a coragem para os formular abertamente.

De facto, uma das maiores doenças do nosso tempo é a perda de sentido, e a teologia, hoje mais do que nunca, tem a grande responsabilidade de estimular e orientar a pesquisa, de iluminar o caminho. Perguntemo-nos sempre como é possível comunicar hoje as verdades da fé, tendo em conta as mudanças linguísticas, sociais, culturais, utilizando com competência os meios de comunicação, sem nunca diluir, enfraquecer ou "virtualizar" os conteúdos a transmitir. Quando falamos ou escrevemos, tenhamos sempre em mente o vínculo entre fé e vida, tendo o cuidado de não cair na autorreferencialidade. Em particular, vós, formadores e mestres, no vosso serviço à verdade, sois chamados a conservar e comunicar a alegria da fé no Senhor Jesus, e também uma sã inquietação, aquele frémito do coração diante do mistério de Deus. E saberemos acompanhar outros nesta procura quanto mais vivamos nós mesmos esta alegria e esta inquietude. Ou seja, quanto mais somos "discípulos".

2. Uma teologia capaz de formar especialistas em humanidade e proximidade. A renovação e o futuro das vocações só é possível se houver sacerdotes, diáconos, consagrados e leigos bem formados. Cada vocação particular nasce, cresce e desenvolve-se no coração da Igreja, e os "chamados" não são cogumelos que brotam de repente. As mãos do Senhor, que modelam estes "vasos de barro", trabalham com o cuidado paciente dos formadores e acompanhantes; a eles é confiado o serviço delicado, experiente e competente de cuidar do nascimento, acompanhamento e discernimento das vocações, num processo que exige muita docilidade e confiança.

Cada pessoa é um imenso mistério e traz consigo a sua própria história familiar, pessoal, humana, espiritual. Sexualidade, afetividade e relacionamento são dimensões da pessoa a sere consideradas e compreendidas tanto pela Igreja quanto pela ciência, também em relação aos desafios e mudanças socioculturais. Uma atitude aberta e um bom testemunho permitem ao educador "encontrar" toda a personalidade do que é "chamado", envolvendo a sua inteligência, sentimentos, corações, sonhos e aspirações.

Quando se discerne se uma pessoa pode ou não empreender um processo vocacional, é necessário perscrutá-la e avaliá-la de forma integral: considerar o seu modo de viver os afetos, as relações, os espaços, os papéis, as responsabilidades, bem como as suas fragilidades, medos e desequilíbrios. Todo o processo deve ativar processos destinados a formar sacerdotes e consagrados maduros, especialistas em humanidade e proximidade, e não funcionários do sagrado. Superiores e formadores de seminários, acompanhantes e formadores são chamados a crescer quotidianamente na plenitude de Cristo (cf. EF 4,13), a fim de que através do testemunho de cada um, se manifeste a caridade de Cristo e a mesma solicitude da Igreja por todos, especialmente pelos últimos e excluídos.

Um bom formador exprime o seu serviço numa atitude que podemos chamar de "diaconia da verdade", porque está em jogo a existência concreta de pessoas, que muitas vezes vivem sem muitas certezas, sem orientações partilhadas, sob o condicionamento pulsante de informações, notícias muitas vezes contraditórias e mensagens, que modificam a perceção da realidade, orientando para o individualismo e a indiferença.

Os seminaristas e os jovens em formação devem saber aprender mais com a sua vida do que com as vossas palavras; poder aprender a docilidade com a vossa obediência, a diligência com a vossa dedicação, a generosidade com os pobres com a vossa sobriedade e disponibilidade, a paternidade com o vosso afeto casto e não possessivo. Somos consagrados a servir o Povo de Deus, a cuidar das feridas de todos, começando pelos mais pobres. A idoneidade para o ministério está ligada à disponibilidade, alegre e gratuita, para com os outros. O mundo precisa de sacerdotes que saibam comunicar a bondade do Senhor a quem experimentou o pecado e o fracasso, de sacerdotes especialistas em humanidade, de pastores dispostos a partilhar as alegrias e os trabalhos dos irmãos, de homens que saibam ouvir o clamor de quem sofre (cf. Discurso à Comunidade do Pontifício Seminário Regional "Pio XI", 10 de junho de 2021).

3. A teologia ao serviço da evangelização. Queridos irmãos, no centro do nosso serviço eclesial está a evangelização, que nunca é proselitismo, mas atração a Cristo, favorecendo o encontro com Aquele que muda a vossa vida, que vos faz feliz e vos faz, todos os dias, uma nova criatura e um sinal visível do seu amor. Todos os homens e mulheres têm o direito de receber o Evangelho e os cristãos têm o dever de anunciá-lo sem excluir ninguém. Todo o Povo de Deus, peregrino e evangelizador, anuncia o Evangelho porque, sobretudo, é um povo em caminho para Deus (cf. Exortação Apostólica Evangelii gaudium, 14; 111). E nesta viagem não pode deixar de dialogar com o mundo, com as culturas e as religiões. O diálogo é uma forma de acolhimento e a teologia que evangeliza é uma teologia que se nutre do diálogo e do acolhimento. O diálogo e a memória viva do testemunho de amor e paz de Jesus Cristo são os caminhos a seguir para construir juntos um futuro de justiça, fraternidade e paz para toda a família humana.

Recordemo-nos sempre que é o Espírito Santo que nos introduz no Mistério e impulsiona a missão da Igreja. É por isso que o "hábito" do teólogo é o de um homem espiritual, humilde de coração, aberto às infinitas novidades do Espírito e próximo das feridas da humanidade pobre, abandonada e sofredora. Sem humildade o Espírito foge, sem humildade não há compaixão, e uma teologia sem compaixão e misericórdia reduz-se a um discurso estéril sobre Deus, talvez belo, mas vazio, sem alma, incapaz de servir a sua vontade de encarnar, de estar presente, para falar ao coração. Porque a plenitude da verdade – à qual o Espírito conduz – não é tal se não for encarnada.

Com efeito, ensinar e estudar teologia significa viver numa fronteira, na qual o Evangelho vai ao encontro das necessidades reais do povo. Até os bons teólogos, como os bons pastores, cheiram o povo e as ruas e, com a sua reflexão, derramando azeite e vinho nas feridas de muitos. Nem a Igreja nem o mundo precisam de uma teologia “de escritório”, mas de uma reflexão capaz de acompanhar os processos culturais e sociais, em particular as transições difíceis, assumindo também a responsabilidade dos conflitos. Devemos ter cuidado com uma teologia que se esgota na disputa académica ou que olha a humanidade de um castelo de vidro (cf. Carta ao Grão-Chanceler da Pontifícia Universidade Católica Argentina, 3 de março de 2015).

O Evangelho não se esquece de nos lembrar que o sal pode perder o sabor. E se vivemos mais ou menos pacificamente no meio do mundo, sem uma inquietação saudável, isso pode significar que perdemos a coragem (cf. H. de Lubac, Meditation on the Church: Opera Omnia, vol. 8, Milan 1993 , 166). É por isso que precisamos de uma teologia viva, que dê "sabor" e "saber", que seja a base de um diálogo eclesial sério, de um discernimento sinodal, a ser organizado e praticado nas comunidades locais, para um reavivamento da fé nas transformações dos eventos culturais da atualidade. Uma teologia serva da vida boa, seja a via principal do vosso empenho eclesial, digna de ser exposta entre as coisas belas da vitrine da vossa revista. Uma teologia capaz de dialogar com o mundo, com a cultura, atenta aos problemas do tempo e fiel à missão evangelizadora da Igreja e também fiel às suas raízes no seminário de Milão, chamado a ser lugar de vida, discernimento e formação.

Queridos irmãos, espero que esta reflexão vos ajude a cultivar a vossa vocação de serviço à fé, à Igreja, ao mundo. Obrigado e desejo-vos tudo de bom no vosso trabalho. Abençoo-vos cordialmente e a toda a comunidade; e peço-vos, por favor, que rezeis por mim.

Imagem: Vatican Media

Tradução Educris a partir do original em italiano|21.06.2022



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