Papa apela a uma educação «para a democracia e a paz»

Aos participantes do Congresso «Educar para a democracia num mundo fragmentado», o Papa alertou para o “perigo do totalitarismo do secularismo” e pediu uma educação que promova “a civilização do Amor”

 

Leia, na íntegra, o discurso do Papa Francisco

 

Estamos habituados a ouvir notícias de guerras, mas longe. Síria, Iêmen... habituados. Agora a guerra tornou-se nossa vizinha, está praticamente em casa. E isto faz pensar na “selvajaria” da natureza humana, do até onde somos capazes de ir. Assassinos dos nossos irmãos. Obrigado, Arcebispo Guy-Réal Thivierge, por esta carta que trouxe, e que é um alerta, uma chamada de atenção para o que está a acontecer. Falamos de educação, e quando se pensa em educação, pensa-se em crianças, jovens... pensamos em muitos soldados que são enviados para a frente, muito jovens, soldados russos, pobres. Pensamos em muitos jovens soldados ucranianos; pensemos nos habitantes, nos jovens, nos meninos, nas meninas... Isto acontece perto de nós. O Evangelho só nos pede que não olhemos para o outro lado, que é precisamente a atitude mais pagã dos cristãos: o cristão, quando se acostuma a olhar para o outro lado, lentamente se torna um pagão disfarçado de cristão. Por isso quis começar com isto, com esta reflexão. A guerra não está longe: está à porta. O que eu faço? Aqui em Roma, no ‘Bambino Gesù’ [NDR: Hospital Pediátrico em Roma], há crianças feridas pelos bombardeios. Para casa, trouxeram-nos para casa. Rezo? Jejuo? Faço penitência? Ou vivo despreocupado, como normalmente vivemos guerras perante as distantes? Uma guerra é sempre - sempre! - a derrota da humanidade, sempre. Nós, os educados, que trabalhamos na educação, somos derrotados por esta guerra, porque pelo outro lado somos responsáveis. Não existem guerras justas: elas não existem!

Caros amigos,

Dou as boas-vindas a todos vós que participais do Congresso Internacional «Educar para a Democracia num Mundo Fragmentado», promovido pela Pontifícia Fundação Gravissimum Educationis.

Agradeço ao Cardeal Versaldi as palavras introdutórias e agradeço a cada um de vós por terdes contribuído com a riqueza do vosso contexto cultural, do vosso setor profissional e de pesquisa. Este vosso encontro trata do tema da democracia numa perspetiva educacional. Um assunto muito atual, e também muito debatido. Mas certamente não é frequente que seja abordado do ponto de vista da educação. Pelo contrário, esta abordagem, que pertence de modo especial à tradição da Igreja, é a única capaz de dar resultados a longo prazo.

Desejo oferecer-vos uma breve reflexão, a partir da Palavra que o Senhor nos dirige no Evangelho da liturgia de hoje, ou seja, da parábola dos lavradores assassinos (Mt 21, 33-43.45-46). Jesus adverte contra uma tentação que pertence a todos e a todos os tempos: a tentação da posse. Os arrendatários da parábola, cegos pelo desejo de tomar a vinha, não hesitam em usar a violência e matar. Isto lembra-nos que quando o homem nega a sua vocação de colaborador da obra de Deus e se atreve a colocar-se no seu lugar, perde a dignidade de filho e torna-se inimigo dos seus irmãos. Transforma-se em Caim.

Os bens da criação são oferecidos a cada um na proporção das suas necessidades, para que ninguém acumule o supérfluo nem falte a ninguém o necessário. Por outro lado, quando a posse egoísta enche corações, relacionamentos e estruturas políticas e sociais, então a essência da democracia é envenenada. E torna-se uma democracia formal, não real.

Detenho-me hoje em duas degenerações: o totalitarismo e o secularismo. São degenerações da democracia.

São João Paulo II sublinhou que um Estado é totalitário quando «tende a absorver a nação, a sociedade, a família, as comunidades religiosas e o próprio povo» (Enc. Centesimus annus, 45). Ao exercer a opressão ideológica, o Estado totalitário esvazia de valor os direitos fundamentais da pessoa e da sociedade, ao ponto de suprimir a liberdade. É uma opressão ideológica, e podemos falar das colonizações ideológicas, que continuam hoje e nos levam a isto.

O secularismo radical, de seu modo ideológico, deforma o espírito democrático de maneira ainda mais sutil e tortuosa: ao eliminar a dimensão transcendente, enfraquece e, pouco a pouco, anula qualquer abertura ao diálogo. Se não houver verdade última, as ideias e crenças humanas podem ser facilmente exploradas para fins de poder. «O humanismo que exclui Deus é um humanismo desumano», disse Bento XVI (Enc. Caritas in veritate, 78). E aqui está a diferença, pequena, mas substancial, entre um secularismo saudável e um secularismo envenenado. Quando o secularismo se torna ideologia, ele transforma-se em secularismo, e isto envenena as relações e até as democracias.

A estas degenerações, opôs-se o poder transformador da educação. Em algumas universidades do mundo, por exemplo, foram iniciadas atividades de capacitação, procurando estratégias mais eficazes para transmitir princípios democráticos, para educar à democracia. Convido-vos a continuar nesta linha e compartilho algumas propostas, que confio a todos vós, empenhados nos vários âmbitos.

1. Alimentar a sede de democracia nos jovens. Trata-se de ajudá-los a compreender e apreciar o valor de viver num sistema democrático, sempre perfectível, mas capaz de proteger a participação dos cidadãos (cf. Centesimus annus, 46), a liberdade de escolha, de ação e expressão. E seguir o caminho da universalidade contra a uniformidade. O veneno é a uniformidade. E que os jovens aprendam a diferença e também a pratiquem.

2. Ensinar aos jovens que o bem comum está misturado com o amor. Não pode ser defendido pela força militar. Uma comunidade ou nação que queira afirmar-se pela força fá-lo em detrimento de outras comunidades ou outras nações, tornando-se fomentadora de injustiça, desigualdade e violência. O caminho da destruição é fácil de percorrer, mas produz muito entulho; só o amor pode salvar a família humana. Nisto, estamos a viver o pior exemplo aqui bem perto de nós.

3. Educar os jovens para viver a autoridade como serviço. É necessário formar «pessoas dispostas a colocar-se ao serviço da comunidade» (Mensagem para o lançamento do Pacto Educativo, 12 de setembro de 2019). Somos todos chamados a um serviço de autoridade, na família, no trabalho, na vida social. Exercer autoridade não é fácil: é um serviço. Não esqueçamos que Deus nos confia certos papéis não para afirmação pessoal, mas para que, com o nosso trabalho, toda a comunidade cresça. Quando a autoridade ultrapassa os direitos da sociedade, das pessoas, torna-se autoritarismo e, eventualmente, ditadura. A autoridade é uma coisa muito equilibrada, mas é uma coisa linda que devemos aprender e ensinar aos jovens para que aprendam a administrá-la.

São três caminhos educativos que servem de orientação, como diria São Paulo VI, para a civilização do amor, e pedem para ser percorridos com coragem e criatividade. Parece-me que podem encaixar-se bem no quadro do Pacto Educativo, que iniciámos juntamente com a Congregação para a Educação Católica. Aproveito esta oportunidade para relançar este Pacto, esta aliança que visa reunir aqueles que se preocupam com a educação das gerações mais jovens e que pode tornar-se um instrumento para a prossecução do bem comum global. No contexto causado pela guerra na Ucrânia, destaca-se ainda mais o valor deste Pacto Educativo, para promover a fraternidade universal na única família humana, baseada no amor. Com efeito, a oração pela paz deve ser acompanhada de um paciente empenho educativo, para que as crianças e os jovens desenvolvam uma forte consciência de que os conflitos não se resolvem com violência, não se resolvem com opressão, mas com confronto e diálogo. Haverá sempre conflitos: ensinar aos jovens como resolver um conflito. Não com violência, não com opressão, mas com confronto, confronto saudável e diálogo.

Caros amigos, obrigado pelo vosso trabalho. Abençoo cordialmente todos vós e os vossos entes queridos, as vossas instituições e o vosso trabalho. Obrigado! Cordialmente dou a minha bênção a todos. E peço-vos, por favor, não vos esqueçais de orar por mim. Obrigado!

Tradução Educris a partir do original em italiano

Imagem: Vatican Media

Educris|18.03.2022

 



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