Francisco critica «religiosidade da aparência» e apela ao «perdão»

Papa participou, em Roma, na iniciativa «24 horas para o Senhor» e apelou aos confessores, do mundo inteiro, para “perdoar sempre”: na celebração penitencial Francisco desafiou os crentes a abrirem-se à “misericórdia do Senhor”

Leia, na íntegra, a homilia do Santo Padre

 

«Tudo quanto para mim era ganho, isso mesmo considerei perda por causa de Cristo» (Flp 3, 7): afirma São Paulo na primeira Leitura que ouvimos. E se nos perguntarmos quais são as coisas que ele deixou de considerar fundamentais na sua vida, feliz até por as perder para encontrar Cristo, apercebemo-nos de que não se trata de realidades materiais, mas de «riquezas religiosas». É assim mesmo: era um homem devoto, um homem zeloso, um fariseu fiel e observante (cf. 3, 5-6). E no entanto estes hábitos religiosos, que podiam constituir um mérito, uma ostentação, uma riqueza sacra, na realidade eram um impedimento para ele. E então Paulo declara: «Tudo perdi e considero esterco, a fim de ganhar a Cristo» (3, 8). Tudo aquilo que lhe dera um certo prestígio, uma certa fama «deixa cair… para mim, Cristo é mais importante».

Quem se sente demasiado rico de si e da sua probidade religiosa presume-se justo e melhor do que os outros – quantas vezes acontece isto na paróquia: «eu sou da Ação Católica, eu vou ajudar o padre, eu faço o peditório..., eu, eu, eu»; quantas vezes sucede crer que se é melhor do que os outros; cada qual, no seu coração, pense se já alguma vez lhe aconteceu isto – quem assim procede, contenta-se em salvar as aparências; considera-se satisfeito, mas assim não pode dar lugar a Deus, porque não sente necessidade d’Ele. E tantas vezes os «católicos impecáveis», aqueles que se sentem justos, porque vão à paróquia, porque vão à missa no domingo e gabam-se de ser justos: «Não, eu não preciso de nada; o Senhor salvou-me». Que sucedeu? Que ocupou o lugar de Deus com o próprio «eu» e então, ainda que recite orações e realize atos de piedade, verdadeiramente não dialoga com o Senhor. São monólogos que faz, não há diálogo, nem oração. Por isso, a Escritura recorda que apenas «a oração do humilde chegará às nuvens» (Sir 35, 17), porque só quem é pobre em espírito, quem se sente necessitado de salvação e mendicante da graça se apresenta diante de Deus sem exibir méritos, nem pretensões ou presunções: não tem nada e, por isso, encontra tudo, porque encontra o Senhor.

Jesus dá-nos este ensinamento na parábola que ouvimos (cf. Lc 18, 9-14). É o caso de dois homens, um fariseu e um publicano; ambos vão ao templo para rezar, mas só um chega ao coração de Deus. Mais do que os gestos que fazem, fala a sua postura física: o Evangelho diz que o fariseu rezava «de pé» (18, 11), com fronte altiva, enquanto o publicano, «mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu» (18, 13), por vergonha. Reflitamos por momentos sobre estas duas posturas.

O fariseu está de pé. Está seguro de si, aprumado e triunfante como alguém que deve ser admirado pela sua probidade, como um modelo. Nesta atitude, reza a Deus, mas na realidade celebra-se a si mesmo: eu frequento o templo, eu observo os preceitos, eu dou esmolas... Formalmente, a sua oração é impecável, exteriormente vê-se um homem piedoso e devoto, mas, em vez de se abrir a Deus levando-Lhe a verdade do coração, esconde hipocritamente as suas fraquezas. E quantas vezes fazemos a maquilhagem à nossa vida. Este fariseu não espera a salvação do Senhor como um dom, mas pretende-a quase como um prémio pelos seus méritos. «Fiz os deveres, agora dá-me o prémio». Este homem avança sem hesitação até ao altar de Deus – com fronte altiva – para ocupar o seu lugar, na primeira fila, mas acaba por ir longe demais e colocar-se à frente de Deus!

Ao contrário o outro, o publicano mantém-se à distância. Não procura abrir caminho; fica ao fundo. Mas é precisamente esta distância, expressão do seu ser de pecador face à santidade de Deus, que lhe permite experimentar o abraço bendito e misericordioso do Pai. Deus pode alcançá-lo, precisamente porque aquele homem Lhe deixou espaço, permanecendo à distância. Não fala de si próprio, fala a pedir perdão, fala com o olhar em Deus. Oh como isto é verdade também nas nossas relações familiares, sociais e eclesiais! Há verdadeiro diálogo, quando sabemos preservar um espaço entre nós e os outros, um espaço salutar que permite a cada um respirar sem ser absorvido ou aniquilado. Então aquele diálogo, aquele encontro pode encurtar a distância e criar proximidade. É assim que sucede também na vida daquele publicano. Detendo-se ao fundo do templo, reconhece-se verdadeiramente como é, pecador, diante de Deus: distante, e assim permite que Deus Se aproxime dele.

Irmãos, irmãs, lembremo-nos disto: o Senhor vem a nós, quando nos distanciamos do nosso eu presunçoso. Pensemos: «Eu sou presunçoso? Creio-me melhor do que os outros? Olho para alguém com um pouco de desprezo? «Eu Te agradeço, Senhor, porque me salvaste e não sou como esta gente que não percebe nada; eu vou à igreja, vou à Missa; eu sou casado, casado pela Igreja, estes são divorciados pecadores…»: o teu coração é assim? Vais para o inferno. Para se aproximar de Deus, é preciso dizer ao Senhor: «Eu sou o primeiro dos pecadores, e se não caí numa imundície maior é porque a tua misericórdia me tomou pela mão. Graças a Ti, Senhor, estou vivo; graças a Ti, Senhor, não me destruí com o pecado». Deus pode encurtar as distâncias connosco quando, com honestidade e sem fingimento, Lhe trazemos a nossa fragilidade. Estende a mão para nos levantar, quando nos apercebemos de «tocar o fundo» e entregamo-nos a Ele na sinceridade do coração. Deus é assim: espera-nos lá ao fundo, porque, em Jesus, Ele quis «descer até ao fundo», porque não tem medo de descer dentro dos abismos em que caímos, tocar as feridas da nossa carne, acolher a nossa pobreza, acolher os fracassos da vida, os erros que cometemos por fraqueza ou negligência... e todos nós os cometemos. Deus espera-nos lá, no fundo, espera-nos especialmente quando vamos, com grande humildade, pedir perdão no sacramento da Confissão, como faremos hoje. Ele espera-nos lá.

Irmãos e irmãs, façamos hoje – cada um de nós – um exame de consciência, porque tanto o fariseu como o publicano habitam dentro de nós. Não nos escondamos atrás da hipocrisia das aparências, mas entreguemos confiadamente à misericórdia do Senhor as nossas opacidades, os nossos erros. Pensemos nos nossos erros, nas nossas misérias, mesmo aquelas que por vergonha não somos capazes de partilhar, e está bem, mas a Deus devem-se mostrar. Quando nos confessamos, colocamo-nos ao fundo como o publicano, para reconhecermos, também nós, a distância que nos separa entre aquilo que Deus sonhou para a nossa vida e o que realmente somos no dia a dia: pobres miseráveis. E, naquele momento, o Senhor aproxima-Se, encurta as distâncias e põe-nos de pé; naquele momento, enquanto nos reconhecemos despidos, Ele reveste-nos com o traje da festa. Isto é, e deve ser, o sacramento da Reconciliação: um encontro de festa, que cura o coração e nos deixa a paz dentro; não um tribunal humano que mete medo, mas um abraço divino pelo qual somos consolados.

Uma das coisas mais belas do modo como Deus nos acolhe é a ternura do abraço que nos dá. Ao lermos quando o filho pródigo volta para casa (cf. Lc 15, 20-22), vemos que ele começa o discurso, mas o pai não o deixa falar, abraça-o e ele não consegue falar. O abraço misericordioso. E aqui dirijo-me aos meus irmãos confessores: por favor, irmãos, perdoai tudo, perdoai sempre, sem esquadrinhar demasiado nas consciências; deixai que as pessoas digam as suas coisas e vós recebei isso como Jesus, com a carícia do vosso olhar, com o silêncio da vossa compreensão. Por favor, o sacramento da Confissão não é para torturar, mas para dar paz. Perdoai tudo, como Deus perdoará tudo a vós. Tudo, tudo, tudo.

Neste tempo quaresmal, com o coração contrito, sussurremos também nós como o publicano: «Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador» (18, 13). Façamo-lo juntos: Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador. Ó Deus, quando me esqueço de Ti ou Te transcuro, quando anteponho as minhas palavras e as do mundo à tua Palavra, quando presumo ser justo e desprezo os outros, quando murmuro dos outros, ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador. Quando não cuido de quem está ao meu lado, quando me mostro indiferente a quem é pobre e atribulado, frágil ou marginalizado, ó Deus, tende piedade de mim, que sou pecador. Pelos pecados contra a vida, pelo mau testemunho que mancha o belo rosto da Mãe Igreja, pelos pecados contra a criação, ó Deus, tende piedade de mim, que sou pecador. Pelas minhas falsidades, as minhas desonestidades, a minha falta de transparência e integridade, ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador. Pelos meus pecados ocultos, aqueles que ninguém conhece, pelo mal que – mesmo sem me dar conta – fiz aos outros, pelo bem que poderia ter feito e não fiz, ó Deus, tende piedade de mim, que sou pecador.

Em silêncio por alguns momentos continuemos a repetir de coração arrependido e confiante: ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador. Em silêncio. Cada um repita no seu coração: Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador. E, neste ato de arrependimento e confiança, abrir-nos-emos à alegria do dom maior: a misericórdia de Deus.

Imagem: Vatican Media
Tradução a partir do original em Italiano
Educris|17.03.2023



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